terça-feira, 28 de abril de 2015
ACERTO DE CONTAS ou ESCUTE AQUI, JACK KEROUAC!
Edson Negromonte
Escute aqui, Jack Kerouac, a lata de Nescau está vazia, o leite em pó acabou e minha irmã foi abduzida por extraterrestres. Escute aqui, Jack Kerouac, eu sei que você tá cagando e andando pra tudo isso, mas você é quem estava mais próximo, mais à mão, você e essa mala fedida, parado na encruzilhada, em busca de um certo músico de blues. Escute aqui, Jack Kerouac, você é mesmo um panaca, um bola murcha! Tô com raiva de você: depois de tudo, foi viver com a mamãe, na casa da mamãe, debaixo da saia da velha. em St. Petersburg, na Flórida, entornando latas e latas de cerveja nessa sua barriga grande, seu balofo! Escute aqui, Jack Kerouac, a donzela ficou com medo de se perder na América? Nossa, como você engordou, parece um porco de camisa xadrez. Escute aqui, Jack Kerouac, com quantos paus se faz um poeta beat? Não, não diga, por favor, tenha piedade, você só diria bobagens, asneiras, porque, Jack Kerouac, você tá aposentado, tá broxa. E só a sua literatura ofende agora o bom-mocismo da América. E as gurias ainda estão paradas na estrada de tijolos amarelos, à espera de ver Robert Johnson, de quatro, uivando para a lua, enfeitiçado pela amante abandonada. Escuta aqui, Jack Kerouac, não seria mais digno se você tivesse metido uma bala no coco, como fez Hemingway, com a carabina que herdara do pai? A mesma carabina com a qual o pai se matara. Não, você achou mais cômodo, né?, ir morrendo aos poucos, protegido pelas quatro paredes da TV. Escute aqui, Jack Kerouac, só não vou aí lhe dar umas boas porradas porque, pra mim, você morreu! Jack Kerouac, você fodeu com o sonho americano e isso basta! Sua literatura foi capaz de dinamitar toda a arquitetura da hipocrisia americana e isso é o bastante para um homem morrer feliz. Escuta aqui, velho, mil perdões, tenho coisa mais urgente pra resolver: um meteorito radioativo acaba de cair no meu quintal!
terça-feira, 21 de abril de 2015
EM BUSCA DO HOMEM INVISÍVEL
Edson Negromonte
Uma das mais saborosas e intrigantes histórias da minha família é a que envolve um tio-bisavô, que no longínquo ano de 1898 viajou para o vilarejo de Port Stowe, na Inglaterra, em companhia de Mr. Herbert George. Mr. Herbert o convenceu a acompanhá-lo, o que não foi muito difícil, já que meu tio era um desocupado. Assim, os dois partiram em busca dos cadernos de anotações do Dr. Hawley Griffin, um cientista (físico ou químico, não sei precisar) que morrera recentemente, questão de ano, ano e meio, e estava envolvido com experiências de invisibilidade, um tema em voga na época, basta consultar os jornais e revistas científicas de então.
O opúsculo, com data de um ano antes dessa viagem, dava conta que esses notebooks, em número de três, pudessem estar em poder de um estroina, conhecido em Port Stowe e cercanias como Marvel. Quando embarcou nessa aventura, no cargo de secretário informal do pesquisador inglês, de aproximadamente 30 anos, esse meu tio-bisavô, de nome Octaviano, tinha 19 anos, idade mais que apropriada para o alargamento dos horizontes, idade em que todo jovem deveria seguir em direção ao Velho Mundo ou ao Oriente, para aprimorar a educação.
Mr. Herbert tornara-se amigo da família quando, ao chegar em Hangares, litoral do Paraná, buscou um hotel ou uma pensão, uma hospedaria ou o que fosse, para descansar o corpo cansado da extenuante viagem em lombo de burro, serra abaixo, antes de dar prosseguimento às suas pesquisas sobre os mistérios antropológicos dos sambaquis, os quais abundavam em nosso litoral, principalmente na praia do Pinheirinho. Não havia na época, em Hangares, um local sequer para O pouso dos poucos que se dispunham a enfrentar as escabrosidades de tal aventura, a sinuosa e íngreme descida da capital, no topo da serra, ao litoral. Portanto, Mr. Herbert, levado pela solicitude de tio Octaviano e o bom coração de minha bisavó, teve que se contentar com um quarto em nossa casa, à rua dos Estivadores, o qual se encontrava vago, desde a morte de tia Norinha, irmã mais velha de minha bisavó, dona Honorina. Sequioso das novidades vindas de fora, tio Octaviano tornou-se de imediato amigo do inglês, acompanhando-o para cima e para baixo, em suas pesquisas.
Assim, ao final do ano, fizeram-se ao mar, rumo à Inglaterra, sob as bênçãos e recomendações de minha bisavó. Ao chegarem em Londres, num final de tarde, foi somente o tempo de Mr. Herbert George se desembaraçar de algumas caixas que continham ossos e utensílios do povo primitivo dos sambaquitas, anterior aos indígenas, que encontrara. Ou melhor, saqueara. Deixando-os aos cuidados da Royal Scientific Society, tomaram o trem noturno para Port Stowe. O livrete que alvoroçara o inglês dava conta, nas páginas finais, no epílogo, que o mendigo Thomas Marvel, um dos poucos que se dispunha a falar sobre as descobertas científicas acerca da invisibilidade do Dr. Griffin, tinha aberto uma taverna nos arredores de Port Stowe, chamada The Invisible Man. Esperançoso, ao saber que a língua de Marvel afrouxava fácil, tornando-o todo confidências, quando o álcool atingia o seu coração empedernido, apesar de alertado que o tal Marvel contava histórias fantásticas, invencionices, sobre o Dr. Griffin à simples visão de um misero guinéu, Mr. Herbert não cabia em si de ansiedade. Afinal, ele era um homem da ciência típico do século, disposto a crer em todas as possibilidades da imaginação humana, desde que servissem aos seus propósitos. O livrete sobre o homem invisível, que todos tinham como fantasiosa e espetacular criação literária, era para ele imensurável fonte de pesquisas, mascarado como obra de ficção, trazendo por subtítulo “A grotesque romance”: um artifício para afastar meros especuladores da ciência, os quais só demérito trariam às suas pesquisas.
Com os primeiros clarões da manhã, tio Octaviano e o inglês desciam na aprazível estaçãozinha de ferro do vilarejo. O inglês ergueu os braços acima da cabeça, esticando-os, ficou nas pontas dos pés e bocejou longamente, sendo imitado tim-tim por tim-tim por meu tio. Olhando para os lados, Mr. Herbert apanhou lentamente o cachimbo, encheu-o de fumo. Tirando longas baforadas, indagava silenciosamente que rumo tomar em busca da taverna The Invisible Man e de seu proprietário. Enquanto isso, tio Octaviano, não afeito ao hábito do cachimbo, enrolava um cigarro de palha. Ao acendê-lo, infestou o ar frio da manhã iniciante com o cheiro acre do fumo negro comprado na feira da agora distante Hangares. O rapaz nunca pusera os pés fora dos limites municipais, sequer conhecia a capital do Estado, e agora via-se ali, espreguiçando-se, feito uma raposa velha, na remota Inglaterra, da qual sabia da existência através somente do atlas escolar; tudo lhe parecia, então, muito romântico.
Subitamente, o inglês, como que impulsionado por uma mola invisível, pega a sua mala, fazendo sinal para que meu tio o acompanhasse. Com as malas no guarda-volumes, seguiram em direção às luzes tênues das casas, que começavam a acordar, em busca de informação sobre Thomas Marvel. Bateram à porta da primeira casa, uma mulher, ainda de touca e camisola, segurando um castiçal, olhou-os através da fresta da porta, apertando os olhos.
– Somos viajantes, precisamos de informação...
– Quem é, Mary?
– Viajantes, assim dizem, assim dizem!
– Faça-os entrar e sirva-lhes um bom café, para que não saiam por aí dizendo que o povo de Port Stowe é mal-educado.
– Humpf!
Os dois entraram na casa acanhada, porém aquecida, satisfeitos por não terem de ficar mais tempo expostos ao frio enregelante da manhã. O dono da casa, com um olhar, convidou-os à mesa.
– Buscam informação sobre o quê?
– A taverna The Invisible Man, conhece?
– É só seguir a estrada – disse, fazendo um gesto largo para a esquerda. – É só seguir em frente! O rapazinho aí não é inglês, é? – perguntou curioso o velho.
– Não mesmo, ele é brasileiro...
– Oh, da América do Sul? Vê, eu conheço Geografia... Tem um brasileiro que mora próximo daqui, em Iping, Mr. Monteiro, tradutor...
– Com licença, senhor, é que temos pressa – desculpou-se Mr. Herbert, levantando-se da mesa.
Satisfeitos, Mr. Herbert e tio Octaviano despediram-se, agradecidos, e enveredaram pela estrada de terra. Os primeiros raios de sol trouxeram o prazer da caminhada para os dois viandantes; Mr. Herbert cantarolava uma antiga canção folclórica:
When you hear a sound
That you just can’t place…..
Ao cabo de aproximadamente duas horas, os dois deram com uma construção de dois andares, mal conservada, cuja placa ostentava o desenho de um chapéu e um par de botas, com a inscrição The Invisible Man.
– É aqui! – exclamou tio Octaviano.
A porta encontrava-se entreaberta, mas isso não queria dizer que tivesse sido aberta pela manhã. O mais certo é que não tinha sido fechada à noite. Entraram cautelosamente. A uma mesa próxima ao balcão, avistaram três homens, envolvidos com um carteado que, pelo jeito, atravessara a madrugada. Como se tivessem ensaiado, os três viraram-se ao mesmo tempo em direção aos estrangeiros. Os olhos vermelhos dos jogadores denunciavam, além da falta de sono, os efeitos do álcool. O retrato da rainha Vitória, na parede, observava de esguelha os seus súditos.
– Precisamos de duas camas – foi dizendo Mr. Herbert.
– Sim, sim, cavalheiros, mas antes permitam que eu me apresente: Mr. Marvel, Thomas Marvel, o proprietário. Ao seu dispor. Estes são Mr. Rains e Mr. Whale, amigos da casa. Ali, naquela mesa próxima à janela, Mr. Moore, o barbudo, e Mr. Price. E, nesta mesa, Mr. Sutton; todos habitués da casa. E os senhores são...
– Herbert George e Octaviano de Oliveira Machado.
Apertaram-se as mãos. O dono do estabelecimento era tal e qual o autor do citado opúsculo o descrevia: gordo e atarracado, nariz de batata, cabelos arrepiados e faces coradas, de óculos, as calças seguras por tiras de pano, em vez de suspensórios.
– Nossas malas devem ser trazidas da estação.
– Sim, sim, hoje mesmo estarão aqui. Querem comer algo, beber...
– Preferimos descansar um pouco, antes de qualquer coisa.
No quarto, Mr. Herbert e tio Octaviano, sentindo-se em segurança, começaram a engendrar, em voz baixa, o plano para se apossarem das anotações de Griffin. Confiando nas informações contidas no livrete, já que a descrição de Marvel estava de acordo com a figura que encontraram na hospedaria – um tubérculo equilibrado em dois palitos –, decidiram que deveriam esperar a manhã de domingo, dali a três dias, quando Marvel se encerraria no seu parlour, munido de uma garrafa de gim, diluído em pouca água, “três pingos”, de acordo com as palavras do autor. Na segurança da sua solidão (os parceiros, em respeito aos hábitos “religiosos” do amigo, não o procuravam aos domingos. Somente na segunda, eles voltavam à taverna), Marvel abriria a gaveta do etagér e, dali, tiraria os três livros de Griffin, repletos das anotações acerca da teoria da invisibilidade. E, exatamente assim, aconteceu. Na manhã de domingo, o homenzinho, certo de que os hóspedes estariam fora durante todo o dia, conhecendo os arredores (Mr. Herbert e tio Octaviano, alegando interesse botânico pela vegetação do sul da Inglaterra, saíram cedo, pedindo que Marvel não se preocupasse com o seu almoço, pois retornariam somente ao anoitecer), fechou-se no salão, baixou os estores, sentou-se na poltrona e ficou a folhear os livros. Embevecido com a escrita criptográfica, da qual não conseguia entender patavina, lhufas ou bulhufas, certo de que, um dia, a decifraria. Então, poderia agir livremente, sob o manto invisível da impunidade, dando vazão aos seus instintos bestiais.
Mas tio Octaviano e Mr. Herbert ficaram nas imediações da taverna, à espera do melhor momento para agir, isto é, quando Marvel estivesse totalmente embriagado. Entraram os dois pela porta da cozinha, que cedeu facilmente a um encontrão seco, bem dado, pelo inglês. Ouvindo à porta do parlour, constataram que Marvel dormia, resmungando, sob efeito do gim. Arrombada a porta, tio Octaviano, com um pesado atiçador de lareira, arrebentou a cabeça do senhorio. Um, dois, três, quatro golpes...
– Por Jove, rapaz, chega! Já não é o bastante? O homem chega a estar com os olhos saltados, parece um cão pequinês!
– Desculpe, nunca tinha matado um homem antes... Que o Diabo o leve! Há´de se ter certeza que está bem morto, ora, se há!
O pobre taverneiro morreu como um injusto, gim barato até a tampa. Antes de deixar repentinamente este mundo, balbuciara, em meio à doçura de um sonho: “xis, um doizinho em cima, cruz, traço, B... Meu Deus, que homem! Que cabeça tinha aquele hom”...
Tio Octaviano e Mr. Herbert tomaram rapidamente a direção de Iping, cidade portuária, carregando consigo, além dos livros bolorentos, danificados pela umidade, e as suas malas, uma bolsa com uma pequena fortuna em moedas de ouro e prata que pertenciam ao estalajadeiro, a qual ele guardava junto com os livros.
– Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão! – exclamou tio Octaviano.
– What?
– Nada, é um dito popular do Brasil!
Por um atalho que tinham descoberto no dia anterior, evitaram a estrada principal; em casos assim, todo cuidado é pouco. Em Iping, subornaram sem dificuldade o cúpido Monteiro, também despachante aduaneiro, que lhes arranjou embarque em uma chalupa de saída para o porto de Rouen, norte da França, onde seria fácil conseguir um vapor para a América do Sul. Dois meses depois, desceram no pequeno porto de Hangares, mais mortos que vivos, magros, doentes, trazidos por um barco de pescadores. Com o passar dos dias e boa alimentação, os dois foram se recuperando e, logo, saíram da cama, dispostos a desvendar os caracteres criptográficos daqueles livros que tanto trabalho lhes dera. Encerravam-se no antigo quarto de tia Norinha, definitivamente transformado em laboratório, em meio a tubos de ensaio e retortas e almofarizes e ácidos, tomados de empréstimo à Farmácia Internacional.
Mr. Herbert e meu tio-bisavô Octaviano passavam dias e noites encerrados na toxidez do pequeno laboratório, desvendando os segredos do Dr. Griffin, sem se alimentar, apesar das admoestações de minha bisavó Honorina.
– Saco vazio não para de pé!
Passaram-se três dias sem sinal dos dois, sequer abriam a porta para pegar a bandeja com o almoço. No quarto dia, minha bisavó tornou-se compreensivelmente apreensiva. No sexto dia, como espancasse a porta do quarto e nem um único sinal de vivalma se manifestasse, com o auxílio da mais forte das suas vizinhas, a gorda Darci, casada com seu Romão, fizeram saltar os ferrolhos da porta. Lá dentro, ninguém. Nem tio Octaviano, nem Mr. Herbert. A mulher correu às janelas! Lacradas todas duas, pregadas. Ao perceber a gravidade da situação, vó Honorina soltou um grito agudo e desmaiou. Alguns dias depois, voltou a si, trazida ao mundo dos vivos pela inalação de doses cavalares de amoníaco puro, embebidas em um lenço. Nunca mais foi a mesma, tomou-lhe a alma uma tristeza profunda e uma apatia de dar dó àqueles que a tinham conhecido como a encarnação da alegria, da disposição para a vida.
O fato é que esta história é a versão oficial da família, mas o que se escondeu por muito tempo é que tio Octaviano voltara muito estranho, esquisito, dessa viagem ao sul da Inglaterra, afetado por um mal exótico que o competente médico da família não conseguia diagnosticar. Devido aos rogos da irmã, tio Octaviano e Mr. Herbert concordaram em deixar por um tempo a faina do laboratório e participar da ceia de Natal, única data em que toda a família estaria reunida. E vó Honorina fazia questão de ver toda a família reunida, para celebrar o nascimento do menino Jesus. Então, sem mais nem porquê, em meio à comilança, tio Octaviano ergueu-se e pediu por um momento a atenção de todos. Fez-se o silêncio das situações graves, quando até as moscas intuitivamente deixam de zumbir. E tio Octaviano anunciou à família estarrecida que ele e Mr. Herbert estavam se mudando para Paris, onde iriam viver como um casal, marido e mulher. Um sorriso escarninho bailava nos lábios de meu tio-bisavô, satisfeito com o efeito das suas palavras. Neste exato momento, conta-se à boca miúda, a família começou a desmoronar, a degringolar; envergonhados, os irmãos não se visitavam mais, vó Honorina tornou-se monossilábica, parecia que se falasse uma frase completa, por menor que fosse, desataria em choro convulso até se finar. Como era comum no início do século 20, sumiram as fotografias em que tio Octaviano aparecia, mesmo em calças curtas. Assim se procedia com aqueles que desafiavam as convenções, a moral e os bons costumes: extinguiam-no do mundo real, o mundo da fotografia, essa arte capaz de eternizar a fugacidade da vida. (Neste tempo, a nossa devia ser uma família de posses, pois tinha várias fotografias, isso em um tempo em que a arte fotográfica era ainda incipiente. A grande maioria dos habitantes de Hangares esperava para ser fotografada na festa da padroeira, em 15 de agosto). Somente vó Honorina, desafiando a tudo e a todos, foi corajosa o bastante para guardar uma única foto, justamente a que tio Octaviano e Mr. Herbert aparecem felizes, abraçados, e que seguro agora em minhas mãos. Mas a natureza traquinas, sempre aprontando das suas, através de um bichinho, conhecido como silverfish (lepisma saccharina), tratou de roer justamente as caras certamente sorridentes de meu tio-bisavô Octaviano e de Mr. Herbert. Talvez assim, quem sabe, eles tenham conseguido a invisibilidade que tanto buscavam. Pelo menos, em relação aos parentes sim. E esta história, eu a soube pela boca de minha mãe, que a soube através da mãe dela, e que foi por muito tempo um dos esqueletos no armário da tradicional e decadente família Oliveira Machado.
quarta-feira, 15 de abril de 2015
NA TAVERNA DA VELHA HAQUB ou O UNICÓRNIO
Edson Negromonte
Naquele tempo, em que minha alma ainda não havia sido completamente corrompida pelo álcool, tempo em que eu era um jovem de certa beleza, que tinha todos os dentes da boca, e que a pele da minha face ainda não estava lanhada e salgada pelos vagalhões do mar do infortúnio, eu tive a desgraça de conhecer o unicórnio, essa figura que dizem lendária, e pertencente ao mundo fantástico das fadas... ah, só eu sei, só eu posso confirmar o quanto o unicórnio é real.
Pelo menos para mim, tudo começou quando eu ainda vivia em Dw Revhs, próximo do limite ao sul de Nusredmtap, e ainda morava com os meus avós, os quais me criaram muito bem, com severidade, em conformidade com os seus preceitos religiosos, e não são em absolutamente nada responsáveis pela criatura bestial que vim a me tornar com o decorrer dos anos. Esta criatura que você agora vê, entre asco e piedade, à sua frente, bêbado feito um gambá-micurê. Foi a partir dessa mil vezes maldita visão do unicórnio que teve início a minha desgraça. É ainda bem nítido, após tanto tempo, o princípio da minha queda no despenhadeiro da vida: a primeira vez que entrei em uma casa do pecado, no caso a taverna nojenta da velha Haqub, na qual novamente me encontro, em busca do lenitivo para aplacar meu desespero. Eu estava ainda em meio à idade do viço e meus ombros tornaram-se, então, arcados, de um momento para outro, ao peso dilacerante de um segredo que me vi obrigado a carregar por todos esses infindáveis anos, à custa da minha própria sanidade, até que surgisse alguém, de alma generosa, creio eu, disposto a acreditar na minha história, aceitando, desse modo, para si o meu fado. E esse alguém é você! Percebi isso, com toda a certeza de meu pobre coração, a única parte que se conservou nobre em minha carcaça terrena, e isso percebi assim que a sua sombra assomou àquela porta, antes mesmo de você abri-la, antes mesmo que a empurrasse para poder entrar. Mas, por não confiar em ninguém, nem em mim mesmo, é que tenho uma garrucha apontada para os seus testículos, por baixo da mesa, somente para me certificar de que me ouvirá até o final desse relato.
Foi na taverna da velha Haqub, sim, esta mesma, aqui em Dw Revhs, minha terra natal, portanto, não precisei me afastar nem uma légua sequer de onde tinha sido parido, que encontrei o monge Aled, nascido Alesh Baumdt, da ordem dos espagírios, reconhecidamente os mais competentes alquimistas dessas terras aquém dos montes Thel-el-Rhw. Esse abnegado monge, o qual dignifica a sua ordem pela humildade que demonstra no trato com os desvalidos, e que comigo (com o meu drama particular) não foi indiferente. E sem que eu tivesse pedido a sua intervenção, ele veio até mim e, sentindo-se pela compaixão tão desgraçado quanto eu mesmo, ofereceu-se para esclarecer a mim o meu fado, sobre fatos posteriores e anteriores do meu próprio destino, fatos esses que somente por mim mesmo eu não conseguiria compreender, devido à sua magnitude. Pois, foi ele, o bom monge Aled, que, para mim, deslindou a condenação (digo condenação em seu senso mais estrito, exato, de perversão, corrupção, devassidão) de presenciar a fecundação de uma virgem por essa criatura caprichosa, o unicórnio. Esclareceu-me o bendito monge, que Deus o tenha (mesmo que ainda não esteja morto, que Deus o tenha sempre!), sobre as implicações místico-filosóficas do unicórnio, o qual é citado nas mais antigas escrituras da humanidade, inclusive na própria Bíblia Sagrada, o proclamado Livro dos Livros, algumas vezes, na tradução autorizada do rei Meijer-ub, sendo a mais evidente em Números, no capítulo 23, versículo 22, nas profecias de Balaão: “Deus vos tirou do Egito; as suas forças são como as do unicórnio”. Você percebe, é capaz de perceber, o peso dessa pequena, dessa ínfima oração? Não, não é, ninguém nunca será, a não ser os malditos, aqueles que tiveram a desdita de erguer o véu e presenciar a fecundação de uma virgem, aliás, da Virgem, a Nossa Senhora dos cristãos. E, aqui, persigno-me três vezes! Sim, é isso mesmo, confirmo diante dos seus olhos embasbacados! Em muitas civilizações daquilo que hoje conhecemos por Oriente, a que os nossos antigos antepassados, principalmente os citas, esse povo habitante das estepes, se referiam como Ocidente, sim, já para esses povos da mais remota antiguidade, o unicórnio era a representação do arcanjo Gabriel dos cristãos primitivos. Os citas deixaram em seus túmulos, conhecidos por cúrgãs, inscrições sobre o unicórnio. Talvez possamos dizer, no plural, unicórnios, posto que em tempo tão longínquo houvesse mais, muito mais, unicórnios correndo sobre a terra, sobre uma terra que ainda manava, inocentemente, mel das suas entranhas... Ora, que digo eu, a quem estou querendo enganar? A mim mesmo?! Estaria eu blasfemando? De repente, vi-me como o descrente que tenta, para sua comodidade, minimizar a importância dos seres sobrenaturais pela própria incapacidade de realizá-los divinos. Não, não, o unicórnio é um só, um único ser que, de tempos em tempos, desce à terra para fecundar uma virgem, a Virgem sagrada de um determinado tempo, de uma determinada civilização, de um povo predestinado. Devo deixar claro que o que estou lhe contando a mim foi transmitido, em sigilo, pelo monge Aled, e que esse segredo somente pode ser compartilhado com outro eleito, o qual vem a ser então você. E que eu tudo esquecerei assim que você estiver de posse, em toda plenitude, do mistério do unicórnio. Eu, em verdade, não poderia saber de nada disso somente por mim mesmo, pois nunca me foi permitido ir além das imediações de Nusredmtap-sul. Abençoado monge Aled!
Com a sua chegada, eu me libertarei de tudo isso e de mim mesmo, pois você passará a ser, então, o depositário do mistério e tudo o que ele implica, ou seja, deixa-me lhe contar tudo que sei logo de uma vez, pois não vejo a hora de me libertar de tudo isso: que o unicórnio é cego, usando o chifre para se orientar e que é também através do chifre que ele fecunda a Virgem. Descobrirá também que, apesar de todas as representações pictóricas que o homem já realizou do unicórnio, ele não tem rabo de cavalo, mas de leão, sendo todo o restante da sua figura tal e qual a de um equino, de pelagem mais branca que o mais puro branco dos brancos, a qual se tinge de acordo com as várias cores cambiantes da lua, as várias tonalidades que a lua toma durante o trajeto da noite. Assim como você, eu sonhava ser um cavaleiro, como todos os jovens sonham, mas do Destino ninguém foge. Bem que tentei manter-me puro, mas a cada tentativa eu afundava mais e mais no vício, na vida desregrada. Estou lhe contando tudo isso para que você não incorra nos mesmos erros, para que você tenha sempre em mente que o homem não cria nada que já não esteja criado. Sim, eu sei quanto isto é terrível, é mais pesado até que a própria carga que se carrega por ter sido um escolhido. Sim, somos escolhidos e a rebeldia só lhe trará o sentimento de falência espiritual durante toda essa existência e, talvez, além. Sim, reconheço, fui fraco, sou um fraco, nem mesmo sei por que fui um dos escolhidos se me sabiam fraco.
Não se assuste com o obscurecimento da taverna, nem se volte para trás agora, a tradicional dança dos esqueletos teve início. São as ossadas daqueles que, era após era, se acovardaram diante da missão, é por causa deles, e de mim mesmo, mas muito mais do próprio homem, que a evolução da humanidade, como um todo, se arrasta. Devido a esse acovardamento, desde o início dos tempos ditos quiméricos, teve origem a guerra, sim, porque é uma única guerra desde a origem do homem, toda a pretensa paz é somente a baixa-mar que antecede a preamar. Os esqueletos estão batendo os ossos, mas não olhe, não se volte para olhar! Para o bem da humanidade, não olhe, vença os seus impulsos. Você é a esperança, a última esperança, mais uma vez os deuses concederam a chance de a humanidade se libertar da sua teimosia e, justamente por isso, nós, os servos do unicórnio, estamos de volta à terra. Eu logo retornarei ao seio das estrelas, assim como os nossos irmãos ora esqueletos que dançam a dança do desespero, e você, em absoluta solidão, dará início a mais uma tentativa. Não pense que a culpa de um possível fracasso será sua, ou somente sua, os homens têm mormente a grande parcela de culpa, a qual não será dissipada enquanto eles insistirem em erguer os olhos para o céu em busca da divindade, sendo que a divindade que tão atabalhoadamente buscam habita em seus insensíveis corações. E talvez não se possa mais dizer “seus corações”, mas, sim, um único coração, pulsando por todo o universo conhecido e desconhecido por todo o tempo dos tempos. Quando o homem compreenderá que aquilo que ele percebe como separado, dissociado, isolado, é verdadeiramente uno? E que há um só coração? Aquilo que ofende um homem, ofende a todos, indiscriminadamente.
Eu deveria ter sido o último rebento do unicórnio, mas falhei também, sim, como aqueles que me antecederam eu também fraquejei, e quis o Universo longânime que o homem tivesse mais uma chance, a derradeira. E você é a encarnação desta chance. Assim como eu, e todos os que o antecederam, você presenciará à sua própria fecundação, e isso é soerguer o véu da criação primeva, de quando o mundo em ebulição ainda gemia na ilusão do caos original. Digo isso na intenção de auxiliá-lo no seu percurso, pois a mim foi concedido o privilégio dessa revelação tão íntima a todos que nos antecederam, posto que você, assim eu deduzo, é a âncora das virtudes teologais. Então, devo lhe revelar que quando eu tinha a idade do bezerro da estepe, conforme o calendário primitivo do nosso povo, estava perambulando pela pouco frequentada estrada de Nzrudth, covil de degenerados, ladrões e prostitutas, que leva ao extremo sul de Nusredmtap, quando, em meio ao caminho, deparei com uma floresta espessa, cuja exígua entrada era inteiramente ornada de lírios-do-brejo, de uma luminosidade, para mim, inédita. De um branco que ofuscava, ainda que à luz do fraco e tímido sol de inverno.
Com a imprudência típica da pouca idade, essa qualidade que, nos verdes anos, nos arrasta ao abismo das percepções invulgares, do qual não se volta sem marcas, sem as marcas profundas da experiência indesejada, adentrei aquele inusitado portal de cardamomos e segui, confiante, por uma estrada estreita que logo adiante dava em uma bifurcação, tendo que escolher entre dois caminhos: à esquerda ou à direita. Minha natureza fez-me optar pelo menos trilhado, o da esquerda tomado por espinheiros, os espinhos negros que rasgam, além da roupa, a carne, envenenando o sangue para sempre. Esfarrapado e ensanguentado, dei, de repente, em uma clareira circular, que se assemelhava a um jardim. No centro, flores desconhecidas, de perfumes inebriantes, as quais eu não saberia, mesmo hoje, dizer-lhes os nomes. Um regato de água cristalina murmurejava em consonância com uma música que a tudo permeava. Nesse momento, tudo estava em harmonia, aliás, era a própria inteligência do universo-ilha em paz consigo mesma. Sob uma frondosa e retorcida figueira, cujos frutos pendiam, como brincos verdes, grávidos de si mesmos, das orelhas vegetais da árvore sagrada, encontrava-se sentada sobre um coxim de rico veludo escarlate, cravejado de brilhantes, uma formosa donzela, como jamais eu vira, de beleza tão divinal, tão casta, de olhos que sorriam, traduzindo o que os lábios não ousavam expressar. Sua virgindade... chegava a ser pecado contemplá-la por tanto tempo, muito embora não tivesse forças para dela desviar o olhar. Eu tinha consciência de que era o único espectador do drama que ali se desenrolaria, para o qual eu não poderia jamais ser convidado. Não precisei esperar muito, embora não fizesse questão de presenciar outra cena além da beleza majestática daquele ser diáfano, luz de incandescência para o meu coração ávido de experiências inusitadas, como são os corações dos jovens criados em aldeias perdidas nos ermos da terra, aleitados pelo temor atrativo do macabro desde o berço. Então, eu ouvi as trombetas azuis dos anjos do Senhor anunciando a entrada em cena do ator principal, um ser superior a todos os outros seres dos bosques. Um toque curto, logo seguido por três outros toques que se prolongaram indefinidamente, de uma suavidade que nenhum instrumento terrestre será capaz de reproduzir. Eis que surge, então, galhardamente, o garboso unicórnio. Sim, o unicórnio das esferas, esse ser sonhado e jamais sequer entrevisto pelo homem comum, e mesmo pelos poetas que tão maviosamente o cantam sem jamais tê-lo visto. Todos os relatos já feitos sobre unicórnios, sejam em prosa, ou nos versos dos mais reputados trovadores itinerantes, mesmo os da Provença, não dão a mais pálida conta da beleza dessa formidável criatura. Eu ali, embora aterrado, admirava a cena. Como se a minha presença fosse para eles invisível, presenciei o que jamais deveria ter presenciado: a fecundação da donzela pelo enviado dos Céus, o unicórnio das lendas camponesas ancestrais. Oh, quão angustiante, a minha própria concepção! Asseguro-lhe que por mais que eu tentasse descrevê-la, as palavras que o erudito dispõe não seriam suficientes para dar uma pálida amostra dessa experiência. Talvez isso fosse possível para o poeta que, tendo já enlouquecido, que tendo perdido totalmente a razão, fizesse uso irresponsável das palavras, sem preocupação com o sentido mundano que elas possam ter.
Saí dali muito tempo depois, quando a tarde ia já avançada, andando às tontas,atordoado, inebriado por um licor natural que brotasse dos mamilos das folhas e que delas eu o tivesse sorvido, sofregamente, como o recém-nascido suga o leite do seio materno, irresponsavelmente. Tropecei nas pedras, em pedras mínimas que normalmente seriam por mim calcadas sob as solas de minhas botinas. Assemelhavam-se agora as pedras a montanhas que obstruíssem meu caminho de retorno. Pouco me importava para onde estava indo, pouco me preocupava voltar para o convívio dos homens, eu já me sabia epifânico, alguém que presenciara algo muito além daquilo que os homens poderão, um dia, compreender. Os homens sabem que não lhes é lícito desvendar os desígnios de Deus, mas insistem, tanto pedem, tanto suplicam por essa experiência que o Altíssimo, finalmente, em sua infinita misericórdia, lhes concede um vislumbre dos reinos superiores, dos reinos que os homens julgam os mais superiores, muito embora existam outros planos mais, que vão além, muito além de toda a compreensão que se tem ou terá daquilo que ora entendemos como o coração palpitante do Universo, seja lá o que isso queira dizer. Mas por que eu, meu Deus, grande Deus de Balaão? Logo eu, que sou fraco, o mais fraco entre os fracos...
Assim, segui, trôpego, indiferente a tudo, indiferente à vida, à morte, sorte ou azar, até que lentamente fui desmaiando, esmaecendo-me diante de mim mesmo. A audição, o último sentido que adormece, trazia a mim, a distância, os sinos argentinos do templo da aldeia, embora o templo ainda não tivesse sido construído. Despertei dias depois, ardendo em febre, trêmulo, lábios rachados, na choupana de meus avós. Desesperados, eles não sabiam mais o que fazer para trazer-me de volta ao convívio dos vivos. Davam-me já como morto, vítima de um terrível sortilégio. As vozes distantes dos dois velhos em oração, o valhacouto de que tanto necessitava, e ao qual me agarrei com as forças que me restavam, miseravelmente o náufrago de mim mesmo, trouxe-me de volta a um mundo pelo qual eu não morria de amores, mas que era o único que me dava conforto, talvez por ser o único que eu realmente compreendia: o mundo desprezível das paixões humanas. Quando abri os olhos, os dois velhos não puderam conter a lamuriosa exclamação de espanto, usada somente para os que ressuscitam de entre os mortos, não deixando de perceber a senilidade precoce em meus olhos, a nuvem mortiça que agora já os recobria. Este era o sinal: eu atravessara a tênue fronteira. Calaram-se, de nada adiantariam mais as suas orações. Ninguém mais ousaria me resgatar do abismo da noite eterna que, aos poucos, imperceptivelmente, foi tomando conta de todas as minhas mais ínfimas ações. Eu, agora, deveria errar dentro de mim mesmo, não ouviria mais o doce sussurro da voz interior, até a aparição do monge Aled. Foi este, então, o princípio da noite de trevas, a qual foi se instalando lenta, muito lentamente, dentro de mim. Como o homem se acostuma a tudo, até às piores dores, fui também a ela me acostumando, o que não impedia que tentasse dela me livrar afogando-me cada vez mais no lenitivo da embriaguez, na tentativa de extingui-la matando a mim mesmo. Ilusão, como o homem se apega às ilusões...
Por volta dos 30 anos, tudo se tornara escuridão em minha vida, pouco importava se o sol brilhava refulgente no firmamento ou se a Estrela do Pastor afastava a presença luciferiana da vida dos mortais, meus irmãos. Convivia eu com o sentimento inextinguível de que falhara em minha missão. Convivia eu com o sentimento da queda, o sentimento do “paraíso perdido” de Milton, algo por mim compreendido e que me acompanharia por toda a vida: um enorme corvo que jazesse pousado em meus ombros, a crocitar em meus ouvidos a ave endemoniada. Somente eu a percebia; meus amigos de copo, não sabiam dizer porquê, mas era evidente que sentiam-se amedrontados à minha aproximação. Apesar de tudo, permaneciam a meu lado, atraídos pela enorme desgraça que sobre mim se abatera e que, gradualmente, se avolumava – é sempre agradável e reconfortante aos corações submissos encontrar uma infelicidade maior que a sua. E isso os atraía para junto de mim, eu bem o sabia, mas eram as únicas almas que de mim se aproximavam, e eu lhes era grato. Não preciso dizer que, nessas ocasiões, em que os derrotados se agarravam em meus braços, às abas do meu casaco, o álcool era servido sem parcimônia, à larga, como jorrasse aos borbotões de uma fonte inesgotável. E eu me locupletava, embebedando-me do pior vinho, o mais acre, como se fosse champanhe, para tudo esquecer, para não lembrar o que de mais sublime me fora confiado. Qual o quê, quanto mais eu bebia, mais o pássaro agourento se agigantava e fincava as garras sequiosas em meu coração exangue; era o corvo o senhor do que ainda pudesse restar de nobreza em meu coração. Eu era, já então, precocemente, um velho desgraçado à espera de que você chegasse para que pudesse, assim, me libertar, outorgando-lhe a missão divina de libertar a humanidade dos liames que ela própria criou para si. Ah, e como você demorou a chegar! Preciso me libertar dessa névoa pesada que me cerca, a qual você ainda não está apto a perceber. Preciso que você me livre desse sentimento de falência. Só você pode me libertar, aceitando carregar esse fardo que a mim já não pode pertencer, pois encontro-me fraco demais para carregá-lo. Sim, fui fraco, reconheço-me fraco, já nasci fraco. Ouve a minha súplica, desconhecido há tanto tempo esperado, livra-me do peso dessas asas negras que insistem em adejar à minha volta, ao meu redor, o tempo todo, na noite sempiterna, intermitentes essas asas de um demônio que não vejo, mas pressinto, sinto-lhe o bafejar em minha nuca. Devo alertá-lo de que você pode recusar essa missão assaz espinhosa, pois que somos escolhidos e não enviados. Você é forte, tenho certeza, não sucumbirá como todos os outros!
Como aquele que imediatamente o antecede, tenho a obrigação de lhe esclarecer, sendo você a última esperança da humanidade imersa em trevas e libertinagem, de que, quando for a ocasião de sua entrada na floresta dos confins de Nusredmtap ,não se deixe encantar pela beleza desnuda da Virgem e quando as trombetas soarem, feche os olhos e tampe seus ouvidos com a cera de abelha que levará consigo, tenha-a sempre à mão de agora em diante. Deve estar, desde já, preparado. Lembre-se sempre dessa advertência, pois não se sabe em que momento a ocasião se apresentará, pode ser agora mesmo ou daqui a seis mil anos. Sim, seis mil anos ou mais, o tempo é uma invenção do homem. Para os sobrenaturais, essa aberração temporal não significa nada, absolutamente nada. Quando o homem se tornou definitivamente materialista, ele quis medir o tempo, a partir de conceitos arbitrários. Assim, julgou-se maior que o Criador. Nossa sociedade atual se pauta pelo tempo, pensando que o domina, que domina o negror da noite e o claridão do dia, utilizando-se de artifícios como horas, minutos, segundos. Mundo de irrealidades! Insisto, jamais abra os olhos durante a fecundação da Virgem, pois estará presenciando o exato momento em que você foi ou será concebido. E esta é a grande maldição! Nenhum de nós, os escolhidos, deve presenciar o momento da nossa concepção. Jamais! A nenhum dos escolhidos foi isso antes revelado mas, como você é o último dessa linhagem, eu tive permissão de lhe adiantar este arcano da autodestruição. Agora, estou liberto! Espero que você não falhe...
– O que há, Rualmstaff, já bebeste o juízo, homem? Falaste pelos cotovelos, como uma mulher desesperada, desde que aqui entrei! Que negócio é esse de unicórnio e de escolhidos? Hahahaha! Haqub, uma caneca de vinho quente. E bem quente! Duas! Uma aqui para o meu camarada Rualmstaff! Hahahaha, o que te falta é um pouco mais do vinho do discernimento, meu velho.
–Vai, conta mais uma das tuas histórias extravagantes, Rualmstaff! São boas para passar o tempo... – disse alguém da mesa ao lado, enquanto, lá fora, a chuva caía torrencialmente.
quarta-feira, 8 de abril de 2015
TARZAN DEPOIS DA GRIPE
Edson Negromonte
O interesse pela cultura popular, de massa, tem me proporcionado encontros inusitados. Acho que ao se debruçar sobre um autor estrangeiro, aparentemente distante da nossa realidade, deve-se averiguar também a influência que os personagens por ele criados têm sobre a cultura de nosso país. Assim, por exemplo, no final de um longo texto sobre Edgar Allan Poe, pode-se demonstrar que a obra-prima “O Corvo” também abre, de tempos em tempos, as imensas asas negras sobre a cultura local, mormente na música brasileira, indo do compositor Belchior e a cantora Elis Regina à dupla caipira Conde e Drácula, entre tantos outros letristas que se apoderaram mesmo sem saber do bordão nunca mais. Como uma coisa puxa outra, também o famoso conde, imortalizado por Bram Stoker no romance “Drácula”, já deu muito sangue ao nosso banco cultural: literatura, quadrinhos, cinema, TV e, inclusive, à indústria alimentícia, a qual teve a ousadia de lançar nos anos 70 um picolé de casca preta de chocolate e recheio vermelho, de morango. Sem a pretensão de esgotar a influência vampírica, a criação stokeriana também já cravou os dentes pontiagudos em Rita Lee, paixão que ela poeticamente traduziu na canção “Doce Vampiro”, sem esquecer o nietzschiano Jorge Mautner, que nos brindou com “O Vampiro”, além do insólito “Vampiro Doidão”, na voz do humorista Jô Soares, entre tantos outros que seria cansativo enumerar. Em tempo, não poderia deixar de citar “Vampiros Modernos”, de Ivan Lins e Vitor Martins, “Vampiro Mordido”, de Rogério Skylab, e “Dracula, I Love You”, da compositora Tuca, mais o poema concreto “Viventes e Vampiros”, de Augusto de Campos, musicado por Cid Campos. Como uma coisa puxa outra: “Frankenstein, o Prometeu Moderno”, de Mary Shelley, deu a Noel Rosa, na clássica briga com Wilson Batista, o apelido de “frankstein da vila”, por causa de um defeito no queixo, decorrente do uso do fórceps na hora do parto. Mas este texto também não deve se demorar em criaturas feitas a partir de corpos alheios. Fica para outra ocasião. A influência do cinema, além de vasta, é muito antiga na cultura brazuca, fato que vem a ser comprovado pela cançoneta “Matuto no Cinema”, de autoria de Aristarco Dias Brandão, gravada provavelmente entre os anos remotos de 1913 a 1918. É do genial compositor Heitor dos Prazeres o samba “Depois do Cinema Falado”, lançado entre 1936 e 1937. Ao mesmo tempo, também Noel, falecido em 1937, faz a sua reclamação sobre o advento do cinema sonoro, o qual estaria modificando o linguajar do malandro, em “Não Tem Tradução”, gravado pela primeira vez por Araci de Almeida, em 1950.
Depois deste “esclarecedor” preâmbulo, vamos ao que realmente interessa: Noel, apaixonado pela sétima arte, compôs, com Vadico, “Tarzan, o Filho do Alfaiate”, samba originalmente gravado por Almirante, em 1936, e mais recentemente por Djavan, Pedro Mariano e Cida Moreira, no qual tira sarro da própria figura esquálida e feiosa, em comparação à do rei das selvas. O cinema brasileiro providenciaria um dos títulos mais curiosos da saga nacional do homem-macaco, a pornochanchada “Tarzann, o Bonitão Sexy”, em 1977, sob a direção de Nilo Machado, sem esquecer o clássico “Jecão... Um Fofoqueiro no Céu”, película na qual Mazzaropi encontra o herói no plano astral. No ano seguinte, os Originais do Samba lançariam o sucesso “Aniversário do Tarzan”. A música brasileira é mesmo pródiga em referências ao personagem, incluindo a new wave oitentista da Gang 90 & Absurdetes, “Perdidos na Selva”, citando a tão famosa e nunca dita me Tarzan you Jane. A Gang 90 ainda aprontaria mais uma, ao citar o rei dos macacos na irreverente letra da canção “Será que o King-Kong é Macaca?”, para a trilha do musical infantil “Plunct Plact Zum”. No teatro, há a peça vanguardista de José Agripino de Paula, “Tarzan Terceiro Mundo – O Mustang Hibernado”. Como se não bastasse, não poderia deixar passar em branco a capa do primeiro disco solo de Raul Seixas, cujo título é “Krig-ha, bandolo!”, o grito de guerra dos grandes macacos. A paixão pela soberba criação de Edgar Rice Burroughs levou-me então a um inusitado encontro.
Sabedor do meu interesse pelo homem-macaco, um amigo, técnico em eletrônica, e igualmente curtidor das aventuras do Lorde Greystoke, trouxe-me, um dia, a agradável notícia de que na cidade onde morávamos, no interior paulista, vivia um pacato comerciante que atuara num filme aparentemente desconhecido, no qual interpretava o papel principal. Surpreso e ansioso, saí em busca da veracidade da informação. Primeiro, para minha decepção, consultei “Kings of the Jungle”, é claro, a bíblia do assunto, o qual se atém somente à produção norte-americana. Decidido, saí em busca do Tarzan tupiniquim. No endereço indicado, à Rua Dr. Torres Neves, encontrei um estabelecimento comercial, no qual entrei como um cliente qualquer em busca de uma mercadoria, averiguando, sondando o terreno onde estava pisando. À primeira vista, pensei se tratar de uma loja de discos de vinil. Enquanto ia puxando os discos, eu relanceava os olhos e aguçava os ouvidos para perceber fiapos de conversa que me dariam chance, num primeiro momento, de puxar conversa. Nessas ocasiões é de bom alvitre agir com cautela, cada movimento deve ser milimetricamente calculado, como diria o Chapolim Colorado. No balcão em frente à porta, vários fardos de papel higiênico. Ao lado, sacos de ração para cães e gatos, e instrumentos musicais. Não pense você, incauto leitor, que se tratava de um armazém, como os de antigamente, onde se encontrava de tudo, desde botões e alfinetes até mantas de charque e bacalhau penduradas à porta. Não, não era. Ali, havia somente discos usados, papel higiênico, ração, um pandeiro e um violão. Intrigado, dando asas à imaginação, caraminholava as mais estapafúrdias hipóteses de como o rei dos macacos viera parar numa casa comercial tão intrigante. Definitivamente, não era mesmo um armazém. Quando muito, um humilde ganha-pão. Enquanto eu examinava os discos, para verificar a profundidade de possíveis arranhões, sentia cravados em mim os olhos do balconista. Peguei três elepês e me dirigi ao balcão: Nancy Sinatra, Fleetwood Mac e a trilha sonora de “Sem Destino”, todos em perfeito estado. Detrás do balcão, refestelada numa confortável poltrona, uma gorda senhora, a suposta mãe do proprietário, tricotava alguma coisa, talvez um cachecol. Ao chegar ao balcão, fui recebido por um galalau de quase dois metros de altura, que lembrou-me imediatamente Lex Barker: alto, quarenta e poucos anos, loiro oxigenado, e um físico que um dia fora atlético. Entabulamos uma conversa sobre os graves do vinil, que a tecnologia do CD não conseguia recuperar, o manuseio dos bolachões, as capas como obra de arte etc. Quando o papo já se tornara amigável, inopinadamente perguntei-lhe o nome.
– Tahan, Jamil Omar Tahan.
– Por acaso, você é o Tarzan?...
Surpreso, empertigou-se.
– Tarzan? Como você sabe disso?
Contei-lhe então da importância do seu filme para as minhas pesquisas, o qual não constava nem em “Kings of the Jungle”.
– Qual o nome do diretor?
– Ih, sabe que não lembro mais? – disse ele, reticente. – Na verdade, é um tempo da minha vida que faço questão de esquecer.
– Por quê?
– Sofri muito com isso. É verdade. Acho que o diretor era paraguaio ou argentino. Acho que era paraguaio... Olha, o filme foi feito no Paraguai, fomos presos... Tempos difíceis, o país vivia a ditadura. A soldadesca, quando viu a gente, cheio de equipamento, num jipe, tudo cabeludo, achou que era terrorista. Foi todo mundo em cana... Veja só, os outros saíram no mesmo dia, eu amarguei uns dois meses na xadrez, sem ninguém procurar por mim, nem diretor, nem os atores. Logo eu, o astro principal. Não me pergunte por que, de uma hora para outra, fui posto em liberdade. Fui torturado... – disse, com uma careta, apontando disfarçadamente para os testículos. Ouviu-se uma tosse no recinto, coisa que fez Jamil se calar. Olhei de esguelha para a velha senhora refestelada na poltrona, visivelmente contrariada. Achei melhor deixar a conversa para ocasião mais propícia, quando a velha senhora não estivesse presente. No dia seguinte, para minha alegria, encontrei Tahan sozinho, por volta das onze horas da manhã. Talvez a sua vigilante mãe estivesse preparando o almoço nos fundos da casa, assim supus. Para ganhar a sua confiança, escolhi mais alguns discos e um saco de ração para gatos, embora nesse tempo Brenda ainda não tivesse me adotado.
– Sobre aquele assunto...
– Pois é, ontem tive que me calar, minha mãe ainda tem muito medo de tudo isso, sabe, até hoje não me recuperei completamente. Sabe como são as mães, né?
Assenti com a cabeça. Sem que eu pedisse, ele desandou a falar, apreensivo, olhando para os lados.
– Sabe, eu nunca vi esse filme, nem sei se foi exibido.
– Passou no SBT... – disse eu.
– Você viu?!
– Não, um amigo me contou.
– Pois é, não é a primeira pessoa que me fala isso. Esse filme é um mistério até para mim. Se ele existe, se você conseguir descobrir alguma coisa, conte somente para mim, quando minha mãe não estiver por perto, sabe, a gente se afastou de tudo isso, dos holofotes, da glória, agora somos evangélicos, crentes, como dizem, não assistimos mais televisão, nossa vida pertence agora ao Senhor...
Um leve ruído, vindo da cozinha, fez com que Tahan se calasse repentinamente. Calei-me também, num acordo tácito. Tarzan estendeu-me a gigantesca manopla, em despedida, a minha mão perdeu-se naquela barafunda de dedos que, um dia, tinham acariciado os cabelos de Jane ou os pelos da Chita, sei lá. Até hoje não consegui encontrar mais um rastro sequer do Tarzan paraguaio. Ou argentino? Saí dali confuso, com o corte brusco, como se a fita houvesse arrebentado no meio da sessão.
- Vá com Deus! – disse em alto e bom som o mais obscuro Tarzan de todos os tempos.
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