quarta-feira, 15 de junho de 2016
JOEL BARONESA
por Edson Negromonte
Nos acontecimentos da cidade, ele era figura fácil. Esteve presente na apresentação do cômico Rony Cócegas no palco do Cine Ópera; esteve no julgamento do bandido Sete Facadas, que causou tanto burburinho e trouxe até a imprensa internacional ao nosso pequeno tribunal; assim como estava à frente da multidão curiosa que foi ver o círculo de pasto queimado que a nave alienígena deixara na propriedade de Edgar Withers. Ele próprio, Joel, era um evento por si só: quando os dias se arrastavam preguiçosamente na modorra típica do nosso cotidiano, Joel fazia de tudo para amenizá-la. Por isso, lembrar e falar de Joel é necessário. Vale a pena começar pelo apelido que o marcaria por toda vida, desde a adolescência: Baronesa. Não se dizia simplesmente Joel, mas invariavelmente Joel Baronesa. A origem do apelido vem de sua irmã mais velha ter se casado com um barão russo, que aportou na cidade, vindo da Rússia czarista, para explorar o ferro-gusa. Tão logo o barão André de Ludinghausen Wolff, anteriormente casado com a princesa russa Xênia Shcherbatoff-Strogonov, parenta do inventor do estrogonofe, chegou, e entre as beldades da cidade, tomou-se de amores por ela, a belíssima e radiante Ieda, a qual, com o casamento, tornou-se baronesa consorte. Seria para sempre e para todos Ieda Baronesa. Do título de nobreza da irmã, mas principalmente do costume de surrupiar da casa dela pequenos objetos, como um belíssimo baralho árabe ou minúsculos bibelôs de cristal vermelho de Muhlbeck, para revendê-los, é que Joel seria para sempre e por todos conhecido como Joel Baronesa.
Joel, de baixa estatura e belos e inquietantes olhos verdes, tinha uma voz belíssima, com a qual fazia malabarismos vocais que o faziam perder o tom, prejudicando a performance; adorava dar uma canja nos clubes com música ao vivo. Sua canção favorita, na qual ele se superava como crooner, era “Castigo”, de Dolores Duran, à qual ele emprestava, no trecho final, um balanço típico do rock, à imitação de Os Incríveis, somente com muito mais molho, algo na linha do Simonal, e emendava os versos "I love you, baby/And if it's quiet all right/I need you, baby/To warm the lonely nights/I love you, baby/Trust in me when I say", de "Cam't Take My Eyes Off You", a clássica balada de Frankie Valli and the Four Seasons.
Lembrar de Joel é trazer à tona as suas peripécias, as quais deveriam pelo inusitado fazer parte dos anais da cidade, dignas de serem contadas à volta da mesa, nas noites geladas de inverno, quando um fogo arde no chão e os moradores das casas tornam-se, em sua grande maioria, contadores de casos, os quais os aproximam, aquecendo seus corpos e corações. Assim que cheguei à cidade, a primeira história de Joel que ouvi foi sobre o acidente recente com o Volkswagen do seu padrasto, a quem ele tratava por Padrinho. Sem o que fazer, em uma das tardes típicas da cidade, sonolentas, Joel e alguns amigos resolveram roubar o fusca do velho para “dar um ferro”, gíria usada à época que significava andar a toda, perigosamente, com os infalíveis cavalos de pau. Com a derrapagem em alta velocidade, capotar é uma possibilidade nada remota. E foi justamente o que aconteceu com o fusca do seu Nonô, apinhado de rapazes e moças, naturalmente ávidos por viver perigosamente. Alguns foram parar no hospital. Um dos que saíram ilesos do acidente, Johnny Saci, fazia questão de contar a todos que, quando conseguiu sair do meio das ferragens retorcidas do carro, Joel olhou desconsolado para o guarda-chuva escangalhado do padrasto e disse: – Olha o guarda-chuva de padrinho, o que eu vou dizer em casa?
Uma noite, a comoção foi geral: o Vasquinho, a única viatura policial da cidade, era motivo da aglomeração em frente à casa de Joel Baronesa, ao lado do cinema, ao final da sessão, por volta das 10. Os ladrões tinham entrado na casa dos seus pais, para roubar, contava Joel para os dois policiais e para a turba de curiosos, e, como ele houvera reagido, os patifes lanharam o seu peito com uma faca de ponta, a qual se encontrava sobre a pia da cozinha. Enquanto um dos policiais levava Joel ao pronto-socorro, o outro examinava a cena do crime. Balançando a cabeça, o sargento tomou da faca, examinado-a demoradamente, com ar investigativo, coisa que aprendera assistindo filmes noir, de detetive. Após o silêncio que se instaurou no ambiente, depois de revirar o punhal nas mãos, sem nenhum cuidado técnico com a prova do crime, o sagaz sargento Pé de Galinha deu a sua opinião, que era muito mais um veredito que qualquer outra coisa, devido à sua indiscutível autoridade:
– Ladrão coisa nenhuma, foi ele mesmo que se cortou. Com que intenção, é o que vamos descobrir.
Em uma tarde de brincadeiras no morro, estavam os rapazes, em puro exibicionismo para as moças presentes, a se balançar para lá e para cá em um longo cipó. Lá em baixo, a aproximadamente dez metros de altura, os trilhos do trem. Na vez de Joel, um gaiato gritou maldosamente:
– Joel, duvido que você solte o cipó!
Ato contínuo, Joel estatelou-se nos trilhos. Resultado: à tarde, Joel desfilava, todo orgulhoso, pelas ruas centrais, exibindo os dois braços engessados. Joel sentia-se amado quando as pessoas lhe davam atenção, condoíam-se dele, sua carência afetiva era enorme, do tamanho do seu ego.
Joel era doido por carros, mas principalmente pela velocidade que essas máquinas diabólicas representam; a adrenalina foi sua companheira mais constante. Parecia que, nas suas mãos, um carro atingia velocidades inimagináveis, transformando-se em um bólido flamejante, muito próximo da explosão. Certa feita, Joel estava ao volante do Gordini de Reinaldo Cara de Chuva, que, de tão bêbado, estava incapacitado para dirigir; iam os dois pela estrada Morretes-Antonina. Cara de Chuva, então, apertado para urinar, olhou pela janela e, devido ao alto teor etílico, supôs que o carro estivesse parado. Abriu a porta do Gordini, que estava a quase 100 por hora, rolando feito um pacote pelo asfalto. Mas como Deus protege os insensatos, incluindo na lista os bêbados, ele sobreviveria para contar o incidente, arrancando risadas dos presentes.
A melhor história de Joel tem como coadjuvante o comerciante libanês conhecido como Jorge Bigode; era ele de uma educação à toda prova, nada era capaz de tirá-lo do sério, nem mesmo quando as pessoas referiam-se a ele como turco. Uma noite, Jorge e Joel foram à zona de meretrício no Km 4, somente para tomar umas cervejas e dançar com as putas, como era de praxe entre os jovens da cidade. Já calibrados, resolveram parar no Clube Primavera, no bairro do Batel, para tomar mais umas brejas. Joel, aproveitando-se do estado alterado de Jorge, pediu-lhe emprestado a chave do carro, alegando que esquecera alguma coisa na zona. O que Joel queria mesmo era dar vazão ao seu amor pela velocidade. E pelo perigo, evidentemente. Assim, começou a correr pelo asfalto molhado, dando os mais perfeitos cavalos de pau, chegando a atingir um giro perfeito de 360 graus. Mas como o Capeta está sempre atento ao menor vacilo do ser humano, numa dessas Joel evidentemente capotou. Imediatamente, Jorge Bigode foi avisado que Joel estava estendido no asfalto, esvaindo-se em sangue. A bebedeira de Jorge passou no mesmo instante, e ele correu em socorro do amigo, encontrando-o ainda desmaiado, ao lado do seu carrinho capotado, comprado a duras penas. Nem ligou para o carro, acenou para um táxi que ia passando e levou o amigo direto para o hospital, que ficava próximo dali. Depois que deixou Joel sob cuidados médicos e de providenciar que o carro fosse guinchado para o posto de gasolina mais próximo, como não tivesse mais nada para fazer à noite, Jorge achou por bem voltar ao clube e retomar a conversa com uma moça que ele vinha cortejando há algum tempo. Ao subir ao salão, quem Jorge encontra dançando com a sua pretendida, como se nada tivesse acontecido? Sim, Joel! Desta vez, o turco perdeu as estribeiras, avançou sobre Joel e, sem se preocupar com curativos e ataduras, passou a esmurrá-lo sem dó nem piedade.
quarta-feira, 6 de abril de 2016
A GAROTA ESCARLATE
por Edson Negromonte
Apesar do nome, a Garota Escarlate jamais quis ser heroína de quadrinhos. O que ela sempre quis, apesar da lonjura do ermo em que nascera, foi cantar em uma banda de rock e fazer tudo o que lhe desse na veneta, no palco e fora dele. Queria quebrar banheiros de hotéis e jogar aparelhos de TV do alto da suíte presidencial ou, num paroxismo de amor, afagar e afogar o guitarrista, o verdadeiro cérebro por trás de todo o marketing da banda, na piscina da sua mansão nouveau riche. Tudo isso ela fez. Tudo isso a deixava momentaneamente muito realizada, até descobrir sobressaltada, em uma rebordosa, que o mundo do rock é muito previsível. E quem suportaria, todas as noites, tirar num par ou ímpar consigo mesma se engravidaria de Marc Bolan ou de Jobriath. Nem sofreu, ou fez de conta, quando teve que abortar das entranhas o bebê diabo de um travesti chamado Alice Cooper. Cansada do mundo mesquinho das celebridades do rock’n’roll, achou que se sentiria mais feliz se fizesse o vocal de apoio de uma big band dos anos 30. Não mediu esforços para ser a melhor backing vocal de todas as backing vocals do planeta, chamando a atenção de um famoso band leader, que lhe prometeu o vocal principal. Dito e feito, mas logo ela, que jamais sonhara em atingir tão alto posto, só queria fazer um backinzinho, viu-se, de repente, de um momento para outro, tentada a voos mais altos que o de crooner de uma brilhante orquestra de baile. Estava pronta para a carreira solo, pensou, com a confiança e a ambição desmedida que uma carreira de cocaína desperta no mais pacato cordeiro. Tomou, então, de papel e caneta e começou a redigir a própria biografia, cheia de impropriedades, na grande maioria, fictícias. Assim, contou, em meio a sentidas lágrimas de crocodilo que fora violentada dos nove aos dezesseis anos pelo padrasto, com o consentimento da mãe. Contou também que abandonara tudo aquilo que conhecia como lar e pegara “um ita no Norte, para vir no Rio morar”. Desembarcara na então capital federal, entre atônita e maravilhada. Ah, a Cidade Maravilhosa, o porto fervilhante de vida. Ali mesmo, tomou a decisão de vencer na vida a qualquer custo. Ergueu a cabeça, arrebitou o nariz e imaginou-se de salto agulha, apesar de estar de alpargatas. Não, não foi fácil. E quem tinha dito que seria? Permaneceu no Rio, uma breve estadia, até compreender que as coisas legais estavam acontecendo mesmo era em São Paulo. Tocou-se para o bairro da Pompeia. Tornou-se uma superstar local, bem local. E quem podia ombrear com Rita Lee? Uma noite, quando tudo parecia bem, no banheiro, sentada na privada, enxugando a periquita, o tédio a tomou de assalto, apontou o tresoitão para a cabeça e rosnou: – A bolsa ou a vida! Jocosa, disse para si mesma, imitando o paroxístico poeta Torquato Neto: – Para mim, chega! It’s only rock’n’roll, e eu quero é mais, o que eu quero é rosetar! Voltou imediatamente para o Rio, botou uma papoula no cabelo, um vestido vermelho, de alcinhas, cheirou uma carreirinha, sopesou os seios e foi pedir emprego na famosa Orquestra Tabajara, de Severino Araújo; apesar de não jogar bilhar, tinha confiança no taco. Conseguiu ser aceita na Românticos de Cuba, o que, afinal, vem a ser a mesma coisa. Às vezes, cantava também na Metais em Brasa, que também vinha a ser a Tabajara com outro nome. Nesse exato momento, deveria ter início a lenda da Garota Escarlate, aquela que a todos amou e nunca foi amada, mas não, a vida segue caminhos muito tortos, os mais tortos. Chamou a atenção dos executivos das grandes gravadoras, que lhe ofereciam mundos e fundos se com eles se deitasse. A todos dizia, debochada: – Não, esse corpitcho só a mim pertence! Resultado: teve que esperar o advento do disco independente. Gravou o seu, com produção de Arrigo Barnabé. Vociferava o enfant terrible, eufórico, dedo em riste na cara de todos, que a Garota Escarlate era, seria, é a porta-voz do movimento musical que fervilhava nos porões paulistanos. Azar dos azares, fado dos fados, quis o Destino, esse moleque brincalhão e inconsequente, que, justo na noite em que a gravadora fizera a entrega do primeiro disco da Garota Escarlate, uma chuva diluviana inundasse o teatro Lira Paulistana. Recuperados os vinis, apesar de as capas terem virado mingau, nenhum deles tocava nada além de um ruído dodecafônico que atravessava todos os dois lados, tanto o A como o B. Alguns juraram, e juram até hoje, mas já sem muita convicção, que se pode, com muita atenção, ouvir um obstinado “Paul is dead”; outros, um contínuo “eu vou botar pra foder”. E, para contribuir ainda mais com o mistério que cerca o único disco da Garota Escarlate, uma comissão de colecionadores de vinis raros, vinda direto do Japão, comprou, a peso de ouro toda a prensagem e o máster. Não se sabe, até hoje, com que finalidade. Rola uma história evidentemente apócrifa que os discos estão todos guardados, a sete chaves, em uma sala secreta na biblioteca do Vaticano, à qual nem o papa Francisco tem acesso. E a Garota Escarlate? Continua viva e bem, conforme permite a idade de alguém que se consentiu todos os vícios e desregramentos da época. Bem de saúde física, que é o que importa. Depois de tudo isso, a cabeça da coitadinha deu um nó cego que nem Nossa Senhora Desatadora dos Nós desfaz. A todos os curiosos que a procuram, que dela ainda se lembram, invariavelmente responde: – I want to be Stallone!, achando-se a Greta Garbo de Irará. Sim, de Irará, porque ela mora no mesmo prédio de Tom Zé. São, inclusive, vizinhos de porta. Nas noites de lua prenha, pode-se ver o músico levando-a, a eterna Garota Escarlate, para passear, empurrando sua cadeira de rodas; os dois cantarolando "Minha menina Jesus, minha menina Jesus, valei-me". E se alguém deles se aproxima, um fã ou algo que o valha, os dois começam a rosnar e desaparecem em meio às árvores do passeio público, deixando no ar um odor fétido e maligno de butilmercaptana.
quarta-feira, 30 de março de 2016
A MENINA DA ILHA DE SÃO BRAVO - final
por Edson Negromonte
Hoje, passados mais de 30 anos, é véspera de Natal. Estou em minha casa, ansioso, após receber um e-mail, avisando-me da sua chegada repentina, mas não inesperada. À mesa da cozinha, minha mãe aperta carinhosamente minha mão inquieta e diz-me para ter calma, cantarolando com sua voz doce e pequena:
O que tiver de ser, será, será; o que tiver de vir, virá, virá...
quarta-feira, 16 de março de 2016
A MENINA DA ILHA DE SÃO BRAVO - parte 5
por Edson Negromonte
Eu e ela passeávamos pela cidade, pela mata ao redor, pelos céus de diamante, de mãos dadas, sempre juntos, dedos entrelaçados. Sob a garoa, cantávamos alto. Sob a chuva, bem mais alto. Nas tempestades, gritávamos em uníssono com a trovoada. Daí, então, nos calávamos; eram tempos de perseguição política, gente desaparecendo sem mas nem porquê, casas invadidas à luz do dia. E, mesmo assim cantávamos despreocupados, inocentes, aparentemente indiferentes (a felicidade é a mais subversiva das armas). A amantes irresponsáveis, nada aflige, quase nada lhes pode afligir. E como não ser irresponsável na adolescência?
– Sejam felizes, por favor, sejam felizes! – pedia, suplicava, implorava o sol às folhas da relva.
Ela era a minha parceira, cúmplice, amiga, era ao mesmo tempo pai, mãe, irmã. Decidimos que voltaríamos à ilha, lecionar para os filhos dos pescadores, numa escola que construiríamos com as próprias mãos, o suor misturado à massa. A paga do nosso trabalho viria em peixe, arroz, farinha, banana. Não precisávamos mais! As famílias, assustadas com a súbita resolução, uniram-se para nos dissuadir da brincadeira que estávamos levando demais a sério.
Naquela manhã, acordei e fui à sua casa, como de costume. A sua mãe e os irmãos olharam-me apreensivos e deram a entender, em meias-palavras, que ela tinha fugido. Eu não quis acreditar, procurei em todos os cômodos da casa, como se fosse uma brincadeira, uma brincadeira de mau gosto, até que um choro convulsivo acabou por tomar conta da minha alma e, finalmente, do meu corpo. Fôra abandonado! Disseram-me que ela tinha se ido, escondida no bagageiro de uma caminhonete. Como eu poderia viver sem a razão da minha existência? Na terra, são poucos os privilegiados que privam da convivência com um anjo, mais eu quis mais do que me fora oferecido e o Céu achou por bem tomá-la de mim. Levou-a durante a madrugada, enquanto eu dormia, tal e qual um desafortunado Rip Van Winkle. Ela sofria dentro de seu invólucro carnal; pois aos anjos é permitido voar e, como sempre dizia, ela queria voltar a ser somente uma luzinha lilás a saracotear entre as estrelas brilhantes. Passado já um mês, ouvi às minhas costas o familiar tilintar dos guizos. Era ela! Abraçou-me. Nesse momento exato, senti que o anjo tinha horrivelmente se transformado em um ser comum, de carne, sangue e ossos. Não retribuí, não pude retribuir o abraço; eu era feito da argila que, um dia, transformou-se também em carne, sangue e ossos. Ali, justamente ali nos separamos para sempre, embora eu soubesse, através de conhecidos, de quase todos os seus passos, que se mudara para a capital, casara, engravidara, que cantava numa banda de rock, descasara, que tinha uma escola de música... até que a vida, veloz como sempre, foi empurrando-me aos trambolhões em outras direções, afastando-me para sempre da sua presença.
quarta-feira, 9 de março de 2016
A MENINA DA ILHA DE SÃO BRAVO - parte 4
por Edson Negromonte
No domingo, enquanto todos levantavam acampamento, eu só pensava em ficar vivendo naquela ilha, na ilha de São Bravo, no Arquipélago dos Atobás, com aquela família, para poder então ouvir todas as suas histórias, à beira do fogo, à beira da água, na areia noturna da praia enluarada. Roguei a Deus que os barcos naufragassem e que só eu sobrevivesse, que a maré me levasse de volta àquela praia, mas infelizmente a viagem de volta à realidade transcorreu com ventos favoráveis, velas infladas, a todo pano, enfunada a bujarrona. Sem o ser amado, eu não encontrei mais sentido, nem os livros conseguiam mais aplacar a minha ansiedade. Cheguei a imaginar que houvera sonhado, pois anjos não andam assim por aí, de cabelos ao vento e pés descalços. Mas a vida insiste em nos jogar de encontro aos rochedos da realidade. Confortou-me ler o poema de Goethe sobre o arco-íris branco, que o deixara quase cego. Assim, reconfortou-me saber que um anjo me dera a mão, conversara comigo e isso era uma das maneiras de Deus mostrar-me que a vida não é só aqui. Anjos não podem ser vistos quando bem entendemos; quando surgem à nossa frente, querem significar algo. E humanos não podem namorar anjos impunemente. Em seguida, alguém soprou-me ao ouvido sobre as visões angelicais de William Blake na infância, as quais sua mãe curou com uma boa sova. “É melhor que deixes os anjos em paz”. O medo do desconhecido afasta-nos da felicidade; há várias pontes a serem transpostas, mas a aparente precariedade faz que permaneçamos do lado que conhecemos e não cheguemos jamais ao outro lado do abismo.
Passaram-se os dias, as noites, semanas, o mês... mas a imagem diáfana não se despregava das paredes brancas do meu cérebro. Eu, pecador, quis aquele anjo para mim, para abraçá-lo, beijá-lo, mas tinha comigo a certeza dos malditos de que se voltasse a São Bravo não o reencontraria. A alegria foi voltando aos poucos, de quando em quando a imagem querubínica vinha-me à mente. Uma noite, sem esperar, deparei com ela sob uma frondosa mangueira que havia no fundo do quintal. O coração aos pulos estava pregando-me uma peça? Em dúvida, fui caminhando lentamente em sua direção e, num sorriso, seus braços abriram-se para me receber em seu seio. Beijei-a inicialmente na face, para em seguida colar meus lábios aos seus, sem a preocupação de que fosse uma entidade de mundos outros. Palavras quiseram vir à boca, mas nossos lábios uniram-se novamente. Contou-me, então, que a família estava se mudando para a cidade, a mãe decidira que os meninos voltariam a estudar.
Alguns dias depois, a família instalou-se numa casa próxima à minha, com um quintal em frente onde a menina cantava, a plenos pulmões, para as flores brancas da laranjeira, para os pardais, às formigas, para as lagartixas, canções como "Rita Jeep" e "Eleanor Rigby". De vez em quando erguia a cabeça para o céu e entregava a sua dança, ao tilintar de guizos, amarrados nos pulsos e tornozelos, às nuvens, ao azul, às sílfides, às fadas e duendes, a Deus, ao plano de onde ela emigrara. Era perceptível toda a banda do Sargento Pimenta, completa, acompanhando-a com guitarras, cornetas, bumbos e tambores. Um dia, até o flautista de Hamelin veio acompanhar a parada. De outra vez, o Chapeleiro Louco promoveu um chá das cinco especialmente para ela. Ou seria um chá das seis? (Era horário de verão!) Todos riram à larga quando o Ratão do Banhado saiu de dentro da chaleira. Éramos inseparáveis, passávamos juntos toda a possibilidade das horas. Ela levava-me pela mão para ver um pequeno cogumelo que crescera num tronco podre, após uma chuva torrencial. Com um sorriso maroto, mostrava a joaninha no dorso da mão, segredando-me que dela ouvira uma história, a qual só me contaria se lhe desse um beijo. Os dias passavam rápidos; do tempo, tínhamos noção somente quando o Coelho Branco atravessava o nosso caminho, esbaforido, a gritar:
– É tarde, é tarde!
quarta-feira, 2 de março de 2016
A MENINA DA ILHA DE SÃO BRAVO - parte 3
por Edson Negromonte
Ela tomou-me, então, com naturalidade pela mão e foi conduzindo-me à casa, pela estrada de terra, de cascas de ostra, de mariscos, de esqueletos de peixes ancestrais. Deixei-me levar pela menina dos meus sonhos, como se há muito tempo aguardasse esse momento de pura epifania. A cabeça girando, os galhos das árvores me recebiam de braços abertos; minha alma estava tranquila, como nunca antes estivera. Ela era tudo o que a vida inteira eu ideara. Nesse momento sublime, febril, opiáceo, quinceyano, lembro-me perfeitamente, eu tive certeza de que aquele era o ser que eu buscava, o ser que eu aflito buscara, de que não era mais a prosa da literatura, era tão somente a arte da poesia, em sua forma pura e ainda não grafada. Sei que tudo isso pode parecer estranho, por contar tão pouca idade, mas não há nada que possa contradizer um coração apaixonado a vida inteira pela metade perdida da sua catedral, sem a qual vaga-se pelas ruas com a via-sacra exposta, sangrando a cada passo, o corredor da nave sem tapete vermelho e a abóbada destelhada.
O chão da sala da casa era de pequenos seixos, com uma grande mesa central. Um tronco de embaúba vinha do teto, atravessava o tampo e terminava num pequeno fosso, mais baixo que o nível do chão. À guisa de banco, quatro troncos laterais com os lugares escavados. Meus olhos perscrutadores não perderam um único detalhe, apesar de inebriado com a doce fragrância que aquele ser exalava a cada leve movimento do corpo. Havia ainda, no térreo, dois quartos laterais e uma pequena cozinha, de onde vinha o cheiro do café recém-coado em fogão a lenha. Uma escada de degraus de costaneira levava ao andar de cima, onde ela sentou-se na cama, a qual fazia a vez de sofá, em posição de flor de lótus, dando um sorriso tão terno que dois sóis acendiam-se em seus olhos, comprovando as palavras do poeta, “são os olhos as janelas da alma”. Neste segundo pavimento, além da grande sala circular, havia quatro quartos; os da frente, as janelas abriam para o mar, os de trás, para a mata. Nas paredes, as estantes exibiam, com volúpia, livros em profusão, com todos os tipos de encadernação, de couro, industriais, brochuras.
Embevecido com a beleza da menina, eu a ouvia falar sobre leituras à luz de vela, durante as madrugadas, sobre as brincadeiras com os irmãos, as pescarias com o pai, o qual ia vê-los em alguns finais de semana, sobre o trabalho das aranhas, a tessitura das teias, pássaros azuis que vinham em sonho para resgatá-la, para levá-la a passear em suas asas enormes, sobre as longas conversas com os pescadores, o aprendizado com os guaiamuns, as casas de bambu que Arael construía, a cobertura de folhas de bananeira, as músicas que ela ouvia no rádio, as tempestades, o vento que soprava do mar para a terra, da terra para o mar, da falação noturna das almas nas pedras... Eu, muito mais ouvindo do que falando, a tudo assentia com a cabeça, com medo de que ela se calasse. Sua fala perfeitamente incompreensível levava-me de imediato aos mares do Sul, onde um nativo sopra, desde tempos imemoriais, conchas de vários tamanhos e formatos para entrar em contato com os deuses de seus avós, bisavós. Era, ao mesmo tempo, a algaravia do rouxinol do imperador, rios a correr livres nos leitos de pedra, cachoeiras despencando do alto das rochas, banhando o primeiro homem, astros em rotas determinadas desde a Criação e o descanso dos dias sétimos.
De lábios carnudos, pele alva de cetim, ela era feita da matéria das nuvens, onde os anjos do Senhor sentam-se e entoam canções que nós, humanos, traduzimos como orvalho, essas partículas da natureza tão caras aos alquimistas. Por favor, leitor, não estou delirando; se você assim pensa é porque nunca deparou com um ser enviado à terra para ser aquilo que o livro sagrado chama de maná, alimento espiritual que consola a alma, nunca saboreou o vinho das eras cantado e decantado por Omar Khayyam. Ouso dizer que deparar com alguém assim é sentir-se, num lampejo, o guerreiro Arjuna, cujo carro de guerra está suspenso entre os dois exércitos inimigos. Assim como Shelley, os poetas buscam esse ser iluminado a vida toda e, quando o encontram, querem tocá-lo, possuí-lo, insatisfeitos em somente admirá-lo.
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016
A MENINA DA ILHA DE SÃO BRAVO - parte 2
por Edson Negromonte
Para melhor compreensão, devo contar esta história do início, quando aportei à ilha de São Bravo, no Arquipélago dos Atobás, a bordo do veleiro Antares, após duas horas de mar, trazendo na bagagem as leituras recentes de “Robinson Crusoé” e “As Viagens de Gulliver”, mas principalmente de “Dois Anos de Férias”, de Júlio Verne. Sentia-me o grande navegador de mares nunca dantes. Vínhamos numa comitiva que, além do veleiro branco, contava com um pequeno barco de cabine e a negra baleeira, de propriedade de Sven Andersen, de longa barba grisalha e pele curtida de sol, parecendo mais que um homem: um pergaminho. Era um velho marinheiro que, após a aposentadoria compulsória, devido a uma queda na casa de máquinas, passara a escrever relatos fantásticos sobre as suas perambulações marítimas pelo mundo. Por insistência dele, deixei de passar o final de semana envolto nas páginas brumosas de mais um romance juvenil e fora viver, sem o saber, a minha própria aventura. Devo acrescentar neste parágrafo que estava até contrariado com a viagem, pois não havia nada mais interessante para mim, naquela época, que o apaixonante mundo livresco, onde eu era capaz de descortinar novos horizontes e gente muito mais interessante e vívida que as pessoas do mundo real, ao meu redor, de vidas comezinhas e sem graça. Gente como o pirata Long John Silver ou o corcunda Quasímodo ou o Dr. Moreau... Quantas vezes deixamos de viver a nossa verdadeira saga para nos refugiarmos nas páginas seguras de um volume, o qual podemos egoisticamente fechar quando os olhos cansam e retomá-lo quando bem nos apraz. “A vida não é assim, a vida não é bem assim, ela vai nos empurrando, queiramos ou não, e muitas vezes não temos nem o direito de fechar os olhos para descansar um segundo. A vida nos mostrará, independente da nossa vontade, os personagens reais no grande palco giratório, com as máscaras prontas a cair a qualquer momento”. Para me convencer, Sven disse que na ilha moravam dois irmãos, com idades próximas à minha, mas deixara de propósito, creio, de contar que eles tinham uma irmã.
Ao adentrar a pequena enseada, pulei na água que hoje percebo cristalina, apesar de ser na realidade de fundo lodoso, como toda aquela região litorânea. Ou, quem sabe, eu já a tivesse como cristalina. Era janeiro e o sol, esse pai amantíssimo de todas as criaturas da Terra, vegetais e animais, mostrava-se em toda plenitude. Ancoradas as embarcações, aproveitando a maré, descarregamos as tralhas, pois passaríamos ali o sábado e o domingo. Via-se a casa no alto de um promontório. Logo, os moradores vieram nos receber: a mãe Concepción, nascida no Chile, em Antofagasta, e os dois filhos Arael e Camael, de negros cabelos encaracolados, que em tudo lembravam uma gravura, anjos de Botticelli. Foi quando vi, então, descendo a estreita e sinuosa estrada que conduzia à praia arenosa, de shorts, camiseta, pés descalços e longos cabelos castanhos ao vento, aquela que há tanto tempo habitara as minhas noites insones, aquela que eu tentara em vão desenhar, seja rabiscando cavalos em movimento ou seres os mais diáfanos, os quais, por incompetência, eu rabiscava, rabiscava até transformá-los repentinamente em monstros abissais, gigantes terríveis das profundezas oceânicas. Meus olhos não conseguiam se despregar da imagem, não havia para mim mais nada nem ninguém ao redor, nem barcos, árvores ou cachorros, âmbulas voadoras ou pássaros santos. Era a primeira vez, em minha existência, uma longa vivência de apenas 17 anos, que meu coração batia descompassado por alguém. Como asseguram os poetas românticos, era o amor que se avizinhava, batendo com as forças de um mendigo esfaimado às portas da minha alma sequiosa.
Tinha ela, então, 13 anos.
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016
A MENINA DA ILHA DE SÃO BRAVO - parte 1
por Edson Negromonte
Acordei pela manhã, lembrando-me do retrato dela, em branco e preto, colado na porta do meu quarto, ao lado de um pôster gigante de Che Guevara, onde lia-se no rodapé "criar dois, três, vários Vietnãs". Amargo até hoje a perda desse retrato, muito mais que o pôster do líder guerrilheiro. Andei perdendo muitas coisas pela vida afora, como revistas, livros, muitos, discos, muitíssimos, casas, que acabaram ficando para os verdadeiros donos, carretéis, pipas, bilboquês, cabelos, quase todos, o que durante algum tempo causou-me constrangimento, mas depois acabei me acostumando, como acostuma-se a tudo, até com a infalível partida dos entes queridos, acostuma-se até com a dolorosa e jamais preenchida lacuna que eles deixam, como nos acostumamos com uma nevralgia, com uma cicatriz que entreabre de vez em quando a pálpebra rósea. Mas com a falta da foto dela nunca me acostumei, como no samba "Praça Clóvis”. Tentei recompô-la; consegui, no máximo, a pose displicente, a mão na cintura, o riso. Ah, o riso! Não era o da Mona Lisa, de freira, e muito menos do gato de Cheshire; escancarado, era o sorriso maroto de alguém que acaba de entrar na adolescência. Carreguei a ausência dessa foto durante todos os dias de minha atribulada vida, mas nunca jamais acordara com tão horrível sensação: de perda. Esse sentimento vinha-me no transcorrer do dia, ao ouvir o fragmento de uma canção, vindo de uma estação de rádio perdida no dial da memória, ou uma brincadeira da velha Haqub, a destrambelhada, num outdoor na esquina mais movimentada da Paulista, ou os sentimentos despertados pela chuva miúda na areia da praia, entrevista pela vidraça. Às vezes, um filme que nunca víramos juntos trazia-me um gosto inexplicável de chocolates não compartilhados (armadilhas que a memória prega, de quando em quando, para que possamos enfrentar o dia a dia de maneira mais leve: as intermináveis filas de ônibus, a mulher que não mais amamos, o emprego que não queríamos, a cidade que detestamos, o ar empesteado de óleo diesel, a água fétida de cloro...). Outras vezes, a cena de um filhote de gato brincando despreocupado com uma réstia de sol levava-me ao calor daqueles dias quando não compartilhamos a delicada cena, somente para que eu beijasse a testa de cada filho, ajeitasse o nó da gravata e saísse à rua para enfrentar os clientes do banco onde trabalhava... Ou Jorge Luis Borges a recitar um curto e terrível poema nunca escrito ou o vocal barroco de Milton Nascimento numa missa imaginária, acompanhado de saltérios, ou, numa noite fria, quando os pingos da chuva, rolando do telhado, percutiam as latas na calçada, como em um noturno de Chopin. Todas essas coisas pequenas, aparentemente miseráveis, traziam-me à lembrança a imagem difusa daquela que foi, um dia, a minha primeira namorada.
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016
RACONTO DE MEIA-QUADRADA
Por Edson Negromonte, à moda de João Guimarães Rosa.
E que açodamento é esse, Nhonhô? Ora, tirar alguém da cama ansim em trajes de dormir, no quase-meio da madrugada. Para que tanta celeridade? Eu, de minha parte, não disponho de nem nenhuma. Adespois, Nhonhô, antes-de-todo carece de esclarecer que toda estória tem um tanto, na maior das vez um tantão, de história, e o vice-verso não corresponde, pois se a história tiver um tantinho de estória, pode até inser bem tramada, fio por fio, até fios de ouro pode de ter, mas passa a ser farsa, passa a ser comédia das burlesca, coisa que só serve para fazer-se rir o povo e, ansim, anquizilar os poderoso. Nhonhô, já-que essa tua-vossa baleeira toda de negro vai cortando de devagar as água, vou aproveitar o ensejo para racontar uma quadrada da minha vida que nunquinha hei de confabular a ninguém, não por mim, mas pelos cabra que vinheram a fazer parte dela. Isso que ora vou racontar a ti e a vós é uma acontecência dos idos de sessenta, por tanto, pelo tanto, há muito tempo para detrás. Nós, os rapazelhos, chamava a ela, mesmo inhantes de nela pôr os pé, a casa do alto da colina. Adespois, quando a gente tava drento, virava logo a casa da colina, e um pouco-pouquinho mais adespois “a casa”, e só. Minha avó chamava à casa “conventilho”, minha mãe a reconhecia como o “conventículo”, já minha irmã dizia a ela “alcoice”, para não dizerem o verdadeiro nome às clara. Era o dito tempo dos temporal que desabava dos céu a qualquer hora, sem nem desencobrir o céu de chumbo, que era um só em todo o país. E a casa era onde os homem de Naufragados se arreunia pra arrespirar um bocadinho que fosse de ar menos impuro, sem luta de classe. A casa, a tal, nem mais inexiste, pruquê nesse mundão nada perdura, e nada há-de perdurar. A colina tamém inexiste mais, nem sobraviveu à casa. A ganância comeu, nessa ordem mesma, casa e colina, mesmo pruquê o inverso-contrário nem-não seria possíver, além de ser de uma incorreção tal e tamanha na ordem das coisa terrena. Nessa casa, presenciei, de olhozibugalhudos, o primeiro crime da minha vida, diz-que crime passional, executado a punhal. A lâmina brilhava que arrebrilhava sob a luz violácea, bem ali em meio do salão central, onde os casais dançava e a zabaneira agonizava. O criminoso, em lágrimas, jurava a ela o amor eterno, amor além da carne. O amor que só a morte evidencia, porque há, nesse orbe, amor de todo jeito, tem até amor que ama só a si mesmo. Pode isso, Nhonhô? E foi nessa casa de perdição que eu encontrei o grande amor, o amor que de tão graúdo pede inté renúncia para não ofender o próprio si-mesmo do amor. Não o amor próprio, mas o próprio amor que se-torna-se impropério de tanto amor. Não pense, Nhonhô, que não veja os seus lábio de mofa. Inhantes que eu contigo me amofine, foi nessa casa que eu arrevi Maia. E, quando eu a arrevi de novo, foi aí entonce que descompreendi o que era o amor. Dize que ela tava ali acoitada da baba de cadela raivosa da polícia. Muitosano despois, sube eu que “maya” é uma palavra do linguajar sagrado das Índia e que-quer dizer “ilusão”. Do muleque que eu era, de entonce, Maia me fez homem. E foi me fazendo homem a cada noite, bem de-vagarzinho, que um homem não se faz de uma noite só, é uma construção paulatina, maré que chega, maré que vai. Adespois, eu soube que Maia se esconderijava é da polícia política, do Exército, do Estado. E se-fazia-se de murixaba para não alevantar suspeita, dava a quirica pra quem pagasse, tal-qual vera-veríssima puta. E, mesmo-ansim, eu me-fascinei-me por ela, mesmo ela sendo mulher de horizontal. Eu bem-que quis fazer dela uma mulherminha, de papel passado; e ela nunquis. Só muito tempo adespois, eu entendi o pruquê que, niuma manhãzinha enregelada de outubro, na era dos 69 pra’os 70, o sol nem não tinha ainda nem renascido, depois de atender o último homem, pra não alevantar suspeita, Maia embarcou niuma baleeira negra que-nem essa e rumou para a ilha das Quantinga, inhonde Lamarca, o capitão-mor das guerra de guerrilha tava acoitado, à espreita. Nadadisso ela me-disse, finquei eu nium trapiche, entre desespero e desesperação, obediente ao pedido de não segui-la, “se vancê me ama”. Desse dia indelante, macambuz, garrei correr mundo, os campos gerais, por lugares tão ermos de se oír toque de viola sem viola. Nhonhô, não faça pouco da minha dor, Nhonhô. Adespois que ela se-foi, Nhonhô, passei a sozinhar inté os dia de inda-hoje, e de noite tamém, desinteirado, no pio do noitibó. A beleza dela era ansim que nem beleza de querubi, e eu que nunca avistei nem anjo nem arcanjo posso mesmo dizer que tinha em Maia um tanto demais de querubinage. Preambulei céu e ceinho, chão e chainho, inté riveira e riveirinha. Assubisserra, desdescisserra por esses campos generais, mas que nuncabandonei o mar, e trazia toda essa imensitude de água salgada nos meus ói, água que eu não chorava, mas que não podia impedir a minha pele de chorar, o choramingo do suor, que sudorar é o chorar disfarçado do homem, sem remandiolage. Ni quando arribei no finismundo, eu me-boquiabri-me de-que havia mais mundo, e que esse mundão inhé tão vasto e tão tamanho que nunca mais há de se acabar. Já chegamo, Nhonhô? Adevolta, eu te raconto o entrecho seguinte da minha desaventurança.
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016
O REMENDÃO E A MENINA
por Edson Negromonte
Quando ele chegou ao nosso hotel de beira de estrada, ao qual meu avô materno, o velho Nicolau, tinha batizado com o pomposo nome de Estalagem do Dragão Vermelho, todas as cabeças voltaram-se em direção à silhueta recortada na porta, à luz dos faróis dos caminhões que passavam na rodovia.Os poucos hóspedes ficaram hipnotizados, fascinados pela presença inquietante que ora dirigia-se ao balcão, sem muita bagagem, a não ser uma pequena mala de couro gasto, a qual contrastava com a imponência do dono, de altura descomunal, gigantesco.
Antes que ele chegasse ao balcão, ouvi uma voz feminina, talvez a de minha mãe, a sussurrar em meu ouvido: “É o remendão, dê a ele o melhor quarto, o da esquerda, que a janela dá para a velha mangueira”. Procurei por minha mãe ao meu lado, atrás de mim, encontrei-a no meio do salão, servindo a janta aos hóspedes. Hoje, pensando bem, vendo o acontecimento por uma nova perspectiva, através da visão retroativa que só a idade avançada e um caleidoscópio concedem, com certeza não era a voz de minha mãe. Quando esse tipo de coisa acontece, ou seja, ouvir vozes que a sabedoria popular nomeia como “vindas do além”, é de bom alvitre não ficar se perguntando de onde vêm ou de quem são, sob a pena de se perder a aptidão de ouvi-las, fato que remete ao poeta inglês William Blake, o qual felizmente convivia com os anjos, mesmo na idade adulta, apesar de ter levado uns bons croques da mãe quando ele, um dia, inocentemente contou a ela que os anjos tinham lhe confidenciado isso e aquilo. O que é, afinal, a realidade? A uma velha alma como eu, a quem o mundo das aparências já diz tão pouco, o que resta além das lembranças de um tempo aparentemente feliz e inocente, no qual ainda se está aberta às possibilidades?
Perguntei à minha mãe se ela sabia o nome do recém-chegado, enquanto ele se afastava, levando a chave do quarto 4B. Sem se virar, o remendão respondeu:
– Digamos que seja Jacob!
Devo acrescentar que, apesar de ele não ter voltado o rosto em minha direção, percebi um sorriso. E como se percebe o sorriso em alguém que não está olhando para você? Sei que é difícil explicar, o que sei é que isso ocorreu de verdade, e essa verdade me basta. Não quero confundir ninguém, talvez seja como perceber que alguém, do outro lado do telefone, está mentindo. Talvez você já tenha passado por experiência semelhante. O que sei é que a mentira, assim como o sorriso, tem o poder de se manifestar com muita clareza, desde que ninguém a veja. Experimente, antes de se deitar à noite, sentar-se à beira da cama e esboçar um sorriso franco para essa entidade vaga a que damos o nome de humanidade, mesmo que o seu dia tenha sido atribulado, mesmo tendo sofrido a perseguição dos contemporâneos.
Na manhã seguinte, muito cedo, antes que eu acordasse, Jacob, o remendão, já deixara o hotel. A sua figura enigmática acompanha-me até hoje, impregnada na memória perfeita das células de meu cérebro. Sem medo de parecer ridícula (o que poderia ainda ser ridículo a uma anciã que teve de arcar com as mais vis maledicências devido às suas ideias filosóficas?), devo esclarecer que creio com convicção que a memória reside nas células do corpo, esse vilipendiado santuário da alma.
Minha adolescência foi muito diferente da das mocinhas da minha idade (detrás do balcão da estalagem, aprendi a conhecer e classificar os mais variados tipos da humanidade em um relance de olhos, ao entrar em contato com a sua aura psíquica), assim, foi fácil perceber no sorriso encoberto do remendão Jacob, sorriso somente a mim destinado, ainda que de modo oblíquo, ou talvez por isso mesmo, a epifânica estrutura espiritual do mundo, além daquilo que a minha pequenez permitia. Perguntar-se-ão, então, os céticos como um sorriso sequer visto, quando muito intuído, pode conter ensinamentos tão importantes para a vida futura da “mocinha sonhadora” que eu era. Ora, um sorriso pode ser um mundo, de coisas boas e até ruins; basta lembrar o sorriso de escárnio, tão comum nos dias atuais, até em crianças já o percebi, sorriso terrível, capaz de desmoronar as certezas do mais tenro cordeiro. Outro dia, fui abordada em uma dessas imensas filas que se formam hoje, seja para pagar a conta d’água ou simplesmente para pedir uma informação, por um jovem de aparentemente vinte anos, recém-convertido à fé evangélica. Apresentou-se a mim como se me conhecesse de longa data, de algum evento ao qual eu não fora convidada, apertando-me a mão calorosamente. Em seguida, ele começou a discorrer com vivacidade sobre a sua conversão, o abandono das drogas... Louvei a sua atitude, é sempre agradável saber que alguém deixou o mundo das drogas, mas o rapaz logo fez questão de enaltecer a sua religião, em detrimento das outras, que só a dele era certa etc. Falei-lhe de Buda, Zoroastro, Krishna, Maomé, tentei mostrar a ele o quanto todas as religiões são importantes. Intransigente, o rapaz, balançando a cabeça, bateu delicadamente em meu ombro e disse, com ensaiada suavidade: “Jesus te ama”. Repliquei: Buda também te ama.
Pergunto-me, então, que direito tenho eu de questionar alguém sobre a sua fé. Deveria ter sido complacente com o meu semelhante, logo eu que acredito que todas as guerras são de fundo religioso, muito mais que econômico. Deveria tê-lo tratado com um sorriso maternal, o mesmo sorriso de Jacob, mesmo que eu não o tenha visto, mas apreendido, porque foi e ainda é um sorriso complacente, condescendente, com a minha ignorância diante da vida, apesar da idade avançada. Assim como o sorriso de Jacob permanece em mim, e levá-lo-ei comigo até o último dos meus dias, o meu sorriso poderia ter sido para aquele rapaz um pássaro azul recortado em céu azul, assim como o sorriso do remendão alemão do século XVII.
quarta-feira, 27 de janeiro de 2016
SESSÃO DE CINEMA
por Edson Negromonte
A movimentação dos atores em “O Gabinete do Dr. Caligari” é mais que uma coreografia, é um balé. Um balé de sombras cubistas. É aí, justamente aí que reside o medo, na perspectiva deformada à qual o homem tem que se adaptar se quiser sobreviver. Este filme expressionista é o retrato fiel e cabal do que se respirava na Alemanha no início do século 20, sob o signo da filosofia trágica de Friedrich Nietzsche: o medo do futuro. Quarenta anos depois, foi essa a conclusão a que o professor Ariovaldo chegou, após assisti-lo na vesperal de um sábado modorrento, no Cine Ópera, no outono de 1964. A partir daí, então, o rapaz dedicou sua vida a desgraçadamente colecionar sombras.
quarta-feira, 20 de janeiro de 2016
SERENDIPIDADE ou A ARTE DE LIGAR AS DUAS MARGENS DE UM MESMO ABISMO
por Edson Negromonte
O ipê deita as flores amarelas na parte baixa do telhado da casa, visão digna da palheta de um pintor impressionista. Dando asas à imaginação, deleito-me a imaginar como Monet resolveria a problemática da leveza da cena que, no instante seguinte, pode muito bem ser dissolvida pelo vento sul que se anuncia. E o que faria Renoir, com a mão já trêmula e hesitante, o pincel amarrado aos dedos, uma extensão de si mesmo? Manet lembrar-se-ia, então, do brilho cegante do Rio de Janeiro, o sol integrando os objetos aparentemente separados entre si? Agosto vai a meio; e Debussy como resolveria tal questão em notas musicais? Apesar da beleza, tudo é transitório; sorte nossa que até as pirâmides do Egito se submetem às areias do tempo, corrosivas, lentamente corrosivas. O que restaria ao homem se tudo o que ele criou sobre a terra permanecesse?
E por que, em meio a esse enlevo, vem a Moura Torta à minha mente? Não, não a temo, somente gostaria de saber quando o homem começou a temê-la. Certamente, nos primórdios, ele a encarava com naturalidade, talvez nem mesmo chorasse os filhos que perdia. Talvez, no início do seu processo materialista, quando ele ousou pensar que Deus, ou a natureza, não proveria o dia seguinte, quando o homem ousou duvidar da bondade que impregna o Universo é que passou a temer a morte. Quando digo que não temo a morte, estou me referindo somente à minha própria morte, e não à passagem daqueles que amo. Apesar de acreditar na vida após a morte, ou melhor, não crer em vida nem em morte, lastimo até hoje a perda do cachalote, ele que era ao mesmo tempo meu pai e minha mãe. O vento soprará, como é do seu natural, e desfará a cena do telhado encardido salpicado de flores amarelas, mas a cena permanecerá em minha memória e talvez isso, somente isso, seja a eternidade: um momento de sublimação em que nos percebemos parte integrante da fugacidade da beleza, quando se passa do estado sólido para o gasoso.
E por que, em meio a essas divagações, enquanto caminhava, sou agraciado pela musa inspiradora com uma anedota certamente ficcional sobre um hipotético encontro, no início de 1961, entre Ernest Hemingway e J.D. Salinger, em que o autor de “O Apanhador no Campo de Centeio” saúda o maior escritor americano, com um gracejo que poucos compreenderiam: “Hemingway velho de Guerra”? A anedota só é possível porque, como os gregos antigos, eu acredito nas musas, principalmente Tália, como entidades possíveis de dialogar com os homens. As informações que adquirimos durante a vida, e que não são de uso cotidiano, são guardadas nos “arquivos mortos da mente” e, de uma hora para outra, quando necessárias, sabe-se lá por que razão, por que mecanismo mágico (traquinagem das musas?), são chamadas à cena para desempenhar um papel específico, dando-nos uma alegria fugaz, provocando-nos um sorriso irrevogável e, ao mesmo tempo, perecível, experiência que não conseguimos compartilhar com o outro, por ser uma anedota íntima, muito singular. Não que o outro não possa compreendê-la, mas porque só a nós diz respeito, somente em nós é capaz de provocar o sorriso inteligivelmente celeste, superiormente terrestre, proporcionado pelas musas. Quantas palavras tive de usar para explicar algo tão simples! E garanto que você sequer esboçou um sorriso complacente. Seria muito eu lhe contar que vi a cena: Salinger, com os braços abertos, a saudar Hemingway? Seria muito eu lhe dizer que foi proposital a grafia “Guerra”, com inicial maiúscula, em vez de simplesmente “guerra”, como seria correto? E, se é que você ainda tem paciência comigo, seria demais eu lhe contar que Salinger e Hemingway se encontraram durante a Segunda Guerra Mundial, em pleno campo de batalha? Ou em Paris, no Hotel Ritz? Esses lampejos são satoris, pequenas iluminações, que se ditas em palavras perdem todo o encanto. E não há nada de errado em usar a palavra satori, Salinger tinha interesse no zen-budismo. E Neil Gaiman, no livro “Os Filhos de Anansi”, associa a imagem do Buda a um limão. E se você estiver se perguntando o que isso tudo tem a ver com o ipê amarelo e o telhado da casa, eu responderia, sem cerimônia, sem medo de errar, tudo. E nada, num universo caótico em que tudo está interligado, mesmo que isso pareça só mais um clichê, entre tantos. Entretanto, não há como dizer de outra maneira. E você imediatamente pensa em física quântica, efeito borboleta e outras dimensões mais elásticas! Acertei? Quando o mundo ainda não era o mundo tal qual o conhecemos, se é que o conhecemos (“Não, ninguém conhece as coisas realmente, conhecemos somente as suas atualidades”.), quando o mundo não era nem mesmo o mundo dos tataravós dos nossos tataravós, um homem, um protótipo do homem, recém-saído das águas, sentou-se solitário em uma pedra em frente ao oceano e intuiu toda a sinfonia “La Mer”, que, muitos milênios depois, um compositor aquiliano, ao qual foi outorgado o nome secular de Claude-Achille Debussy, filho de uma nereida, no auge da solidão interior, a anotou nota por nota, a partir dos registros acásicos, aos quais ele teve acesso.
E esse protótipo do homem, sentado na pedra, diante da imensidão de água, que ele não classificou porque no alvorecer da humanidade tudo era um despropósito, esse homem que ainda tinha escamas, esse homem cuja respiração se fazia através de brânquias, ainda não tinha sequer concebido um dos seus mais primitivos arremedos de Deus. Nem de deuses. Esse homem era o seu próprio deus, até que o primeiro trovão ribombou no horizonte e um raio terrível rasgou o céu noturno em dois. E você acha que foi à toa que a uma enorme cratera do planeta Mercúrio foi concedido o nome de Debussy?
quarta-feira, 13 de janeiro de 2016
NA TAVERNA DA VELHA HAQUB 3 ou O FILHO DE MARY LYNN
por Edson Negromonte
Apesar de grandalhão, o velho não era nada truculento. Seu coração era ver um coração de moça, se enternecia à simples visão de um bebê sendo amamentado no seio materno. O nariz torto e vermelho dava a sua carantonha a falsa aparência de um pugilista sanguinário. Não que nunca houvesse trocado sopapos, mas isto era para ele o último recurso, do qual só fazia uso como recurso extremo. Fazia de tudo para não ter que ir às últimas consequências, ou seja, surrar alguém. Sim, surrar; com ele, as pessoas sabiam que se começasse só pararia quando o adversário não pudesse mais se erguer do chão, estrebuchando. Os habitantes do vilarejo lhe queriam bem, mas queriam muito mais a si mesmos, às suas caras livres de hematomas. Quem o desafiava eram os incautos que chegavam ao nosso pequeno povoado e não podiam admitir que aquele gigante dócil, de voz quase feminina, não fosse provocado, ridicularizado e desafiado para passar o tempo que se arrastava, como sempre se arrasta o tempo nos ermos do mundo: lesma desfazendo-se em campo de sal.
O velho era o ferreiro de Dw Revhs, fabricava as ferramentas mais duráveis de toda a região, mas não abria mão do acabamento; era preciosista. Suas enxadas, pás e machados eram, sem sombra de dúvida, obras de arte. A lenda em torno dele, muitos anos após a sua morte, contava que tentara por muito tempo forjar uma espada encantada, com a qual ele presentearia o seu amigo pessoal, o comandante Golber, a eminência parda e idealizador do golpe militar que tomou o poder em Nusredmtap, por duas décadas. Contavam ainda que ele, o velho, possuía as anotações pertencentes a Merlin, com as quais o mago pessoalmente temperara a Excalibur do rei Arthur, mas isso é somente mais outra lorota em torno do velho; após a sua morte, eu mesmo vasculhei cada palmo da choupana onde morávamos, em busca dos manuscritos do mago. A ele, ao velho, atribuíam um conhecimento profundo das coisas misteriosas do Universo, que verdadeiramente ele não possuía; no mundo medíocre em que vivíamos, bastava saber um pouco mais que os parvos ou ser um pouco mais lunático que a maioria (e quem, a bem da verdade, não é lunático nesse mundo doido?) para que fosse apontado como sábio. Ou bruxo. Sábio ou bruxo, não importa, mais cedo ou mais tarde todos dois vão para a fogueira. Seu coração, sua capacidade de amar era enorme e faz-se necessário que se conte, para avaliação dos pósteros, essa passagem: na parede da nossa cozinha ele pendurara a foto de uma mulher de calendário, desses que ainda hoje são comuns nas oficinas dos ferreiros. E dos borracheiros. Lia-se no canto esquerdo da foto, o nome impresso de Mary Lynn. Ao perguntar-lhe uma vez quem era Mary Lynn, respondeu-me prontamente:
– É a sua mãe, este é o nome da sua mãe!
Depois de muito tempo analisando o quanto de verdade ou mentira havia nessa afirmação, já adulto, cheguei à conclusão de que aquilo não passava de uma necessidade do velho de preencher o vazio da figura materna que havia em meu coração, um buraco que carregarei pela eternidade. Minha mãe me abandonou aos seus cuidados antes de eu completar dois anos de idade. Durante muito tempo, acreditei que a pin-up Mary Lynn fosse minha mãe; era-me conveniente. Durante a minha infância e parte da juventude, eu pude dizer que minha mãe era uma das mulheres mais lindas do mundo.
Depois de fechar a oficina, com a chegada da noite, o velho fazia-me acompanhá-lo à taverna da velha Haqub, local onde os homens se reuniam para beber e contar histórias, fazer chistes, cantar canções obscenas. “Não há lugar melhor para a educação de um jovem”, asseverava. “Aqui”, ele cochichava em meu ouvido, “você aprenderá sobre os homens, as mulheres, suas grandezas e misérias, o mundo”. Seu sonho era que eu me tornasse o bardo oficial de Dw Revhs, garantindo assim a minha subsistência, depois da sua morte. Ingenuamente, acreditava que os poetas continuariam sendo mantidos e respeitados pela comunidade. Obrigou-me, então, a tomar lições de gramática com o venerável ancião DeKampesh. Desculpem o veneno, mas acho que o chamavam de venerável devido às doenças venéreas que pegara durante a Guerra dos Cento e Setenta e Seis Dias que, na verdade, durou cento e setenta e cinco. Logo, eu sabia mais das artimanhas e armadilhas da língua que o venerável; com o tempo, fui tomando gosto pelo estudo e leria todos os livros que enfeitavam as estantes do improvisado mestre-escola, o qual mais dormia do que ensinava, deixando-me à vontade para vasculhar a sua biblioteca, cujos livros até então tinham servido somente para lhe dar um verniz de respeitabilidade perante os broncos habitantes do lugarejo. Somente a aritmética não teve jeito de entrar na minha cabeça dura, até hoje não sei multiplicar. Dividir me foi sempre mais fácil, desde que eu ficasse com a maior quantidade, o monte maior. A inabilidade para as artes matemáticas foi o entrave para os meus pendores pitagóricos, mas a minha poesia, os versos de que fui capaz, mesmo que de pé-quebrado, ajudou-me a conseguir uma sinecura e, assim, manter o meu sustento, além de me deixar muito tempo livre para percorrer os sebos em busca dos livros que tanto amo.
Na taverna da velha Haqub, o velho deliciava-se com a cerveja farta, produzida a partir da fermentação da cevada-das-lebres. Era capaz, depois da terceira caneca dessa bebida intragável, de deixar rolar livremente uma lágrima sobre a face enegrecida e sulcada ao ouvir a voz aveludada da cantora Eli-zeth X., a qual ele se referia carinhosamente como Enluarada. Eli-zeth tentara, várias vezes, levá-lo para a cama, aproveitando-se da sua bebedeira, mas ele sempre recusou cortesmente os convites, apesar da quantidade de álcool no sangue; dizia que alguma coisa dentro dele se quebraria, um osso, um espelho, a quilha. A ele, bastava ouvi-la cantar. Entendia que não poderia viver sem o encantamento de uma musa: nesses momentos, a alma de poeta, que ele tivera de recalcar, falava mais alto. Eli-zeth tinha o frescor e o imediatismo da juventude, não conseguia entender por que aquele homem a recusava. Logo ela, que todos os machos de Dw Revhs e arredores dariam um braço ou uma perna para manchar de sangue os seus lençóis brancos. O velho jamais dormiu com Eli-zeth e nem permitiu que outros dividissem com ela o seu leito; ele a queria inconspurcada. Ele a queria divina, sem o pus dos homens. Achava que ela perderia a condição de porta-voz da Lua se se deitasse com alguém. Enquanto o velho viveu, tenho certeza de que Eli-zeth manteve a condição virginal. Depois da morte do velho, a sua protegida foi embora e nada mais soubemos dela, nem nos preocupamos em saber, porque quem vai embora do nosso vilarinho é como se morresse para sempre. Mas, outro dia, em um antiquário da cidade-mor, de propriedade do meu amigo Licurgo, encontrei em perfeito estado de conservação dois cilindros musicais, gravados por ela, para a Casa Alba, com as canções “Vem para os braços meus” e “Braços vazios”. Tentei seguir-lhe a pista, mas foram embalde todas as tentativas. Ninguém soube dizer algo concreto sobre a cantora Eli-zeth X., nem mesmo o grande pesquisador musical Ravoq Albinus, o qual compilou a mais completa enciclopédia sobre os rouxinóis da terra.
Até hoje, não consegui me refazer da morte do velho. Morte estúpida! Logo ele que enfrentara destemidamente o terrível inverno que a todos flagelara há tempos atrás para salvar da morte certa as cabras que alimentariam, com o leite amarelo, gorduroso e forte, as crianças do vilarejo. Logo ele que disputara com Porco-sujo uma partida quase interminável de pedras adâmicas, da qual saiu vencedor, evitando assim que o demônio instalasse uma franquia de fast-food em Dw Revhs. Logo ele... morreria de complicações advindas de uma doença que qualquer criança consegue superar, mais inofensiva que caxumba. Seu organismo preparado para enfrentar as mais nefastas adversidades do tempo e da vida, não produzira anticorpos suficientes para debelar uma prosaica febre do pântano.
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