Edson Negromonte
Estava sem sono, como sempre. Minha eterna companheira, a insônia, fazia-me perambular pelas noites da cidade, quando as páginas de um bom livro ou os rabiscos de nanquim sobre uma folha de papel em branco não conseguiam ocupar as minhas madrugadas. Assim, vi-me na rua, andando a esmo, despreocupado. O ar quente e abafado levou-me de encontro ao mar. Debrucei-me na amurada, a ouvir o resfolegar da lama sob a ação das marés que iam e vinham. O cheiro característico das algas sobressaía no redemoinho de odores dos seres marítimos em decomposição. Observei durante bom tempo um pneu, atirado às águas, repousando incomodamente sobre o lodo negro, como se ele mesmo soubesse que aquele não era o seu lugar.
Voltei rapidamente a cabeça em direção à loja maçônica Estrela do Oriente, às minhas costas, ao ouvir um breve ruído, como o estalido de um galho seco. Sentada numa grande pedra, percebi uma silhueta. Estremeci, um calafrio percorreu-me a espinha. Confesso, senti eriçar os pelos da nuca. De onde surgira? Ao passar por ali, alguns minutos antes, não percebera ninguém. Não sou de acreditar em almas do outro mundo, nem às deste dou muito crédito, e muito menos nessas besteiras que tornam as conversas à beira do fogo mais interessantes, mas cautela nunca é demais. Olhei, de soslaio, em direção à pedra. Como a silhueta não esboçasse um movimento sequer, mantive-me também às duras penas imóvel. Com o vagaroso arrastar de alguns segundos, adquiri alguma confiança e olhei diretamente ao que eu presumia serem os seus olhos, apesar da distância. Senti um suor frio e pegajoso inundando toda a minha testa. Sim, os seus olhos faiscavam, penetrantes, ora amarelos, ora vermelhos. Petrificado, eu quis voltar-lhe as costas, sair correndo, gritar, mas tudo foi em vão. Continuei estático, sem conseguir deixar de olhar diretamente naqueles terríveis, cruéis, metálicos, infinitamente doces olhos.
Ao longe, um galo cantou. Nenhum outro galo respondeu.
Repentinamente, a noite tornou-se mais quieta que de costume.
Nos tímpanos, uma pressão surda.
– Venha, não tenhas medo... – sussurrou, suave e venerável.
Apesar de querer fugir dali, fui morosamente em direção à pedra, onde permanecia sentada a bizarra figura hipnótica. Aproximando-me, a crueldade dos olhos tornou-se quase maternal, se é que assim se pode dizer sem ofender as mães que porventura estejam me lendo. Perdoe-me você, de espírito suscetível, tem todo o direito de lançar este livro às chamas. Seria falsear a verdade se omitisse que naquele olhar libidinoso havia, ao mesmo tempo, uma indizível doçura... Somente os menos impressionáveis devem me acompanhar.
– Não me interessa o teu nome; eu o sei desde o fatídico Dia da Criação – disse ele, sorrindo matreiro.
Tentei sorrir também, mas só consegui uma maldita contração muscular.
Vi-me então às voltas com as reminiscências da adolescência, quando uma das conversas entre amigos girou em torno do Bode, do culto que a ele prestavam os maçons; do bode como representação da sabedoria, embora os mais afoitos e ignorantes atribuam-lhe o signo maligno. Desses amigos de infância, todos já tinham se mudado ou ido desta para melhor, somente eu insistira em permanecer na pequena e pacata Antonina, levando a vida como professor do único colégio da cidade. Agora, estávamos os dois ali, frente a frente, eu e o nem-sei-que-diga. Disfarçadamente aspirei o ar para sentir o característico cheiro acre de enxofre, mas sou obrigado a dizer que foi em vão. Somente o perfume inebriante do jasmineiro inundou-me as narinas. Lembrei-me então que, um dia, do alto do destemor dos meus quinze anos, alegara aos embasbacados e temerosos amigos que os cornos do bode maçônico eram, nada mais, nada menos, que a representação do conhecimento, e que o grande escultor Michelangelo representara o sábio profeta Moisés com um par de chifres. Sim, pequenos e tímidos, mas chifres.
– Estás tremendo e não está frio. Solte os braços... Ou melhor, faça como diz a canção popular: abra os braços, respire fundo e solte os laços todos deste mundo...
Deu uma sonora gargalhada o excomungado, zombando de uma das minhas músicas favoritas. Em meio a tudo isso, é mister registrar que seus dentes não eram verdes, nem podres, tampouco tinha o hálito fedorento, como eu aprendera nas aulas de catecismo. A bem da verdade, parecia mais um sorriso de propaganda de creme dental. O leitor poderá se indagar, com toda razão, como pude isso tudo perceber, apesar do escuro da noite. Com o intuito de não mentir, devo dizer que estávamos cada vez mais próximos, eu e o canhim. Não posso assegurar se eu ia a ele ou ele vinha a mim. Lembro-me bem, agora, de que estávamos os dois sentados, lado a lado, como velhos amigos. Nem tanto, apenas velhos conhecidos. Cheguei a sentir o roçagar do veludo das suas imensas asas negras em meus braços, e nas costas, no cabelo... Por um momento, admito, senti-me acolhido em seu regaço.
– Sabes que estou em tua vida há muito mais tempo que supõe a tua vã filosofia?
Como bom ouvinte, permaneci calado, a escutá-lo. Com certeza, não era o momento para fazer perguntas inúteis. Sabiamente, como bom ouvinte, deixei que continuasse, pois senti no pobre diangras a necessidade de expor as suas caraminholas.
– Lembras como, em tua Primeira Comunhão, davam ênfase à minha humilde pessoa?
Assenti com a cabeça, mecanicamente.
– Lembras da minha gravura no Catecismo, carregando uma alma inocente pela mão? Lembras de como essa imagem ficou gravada em tua mente, apesar da repugnância?
Assenti novamente.
– Acontece que habito os teus sonhos muito antes disso tudo. Pensa bem nas cantigas de ninar que embalaram o teu sono. Desde o berço, estou contigo; das crianças, eu sou o Boi da Cara Preta. No alvorecer do Homem, entre tantas outras coisas, eu fui o trovão, o Bezerro de Ouro, a Serpente no Altar...
Estremeci, mas não pude deixar de concordar que o sagaz indivíduo estava coberto de razão. Mesmo sem compreendê-lo totalmente, eu percebi no tom de voz a convicção das suas palavras.
A extrema proximidade com o ser melífluo e encantador lembrou-me de imediato um ocorrido: após perder injustamente o alto cargo que ocupava numa empresa estatal, meu pai viu-se da noite para o dia envolvido nas artimanhas de um mago negro, que o encontrou trabalhando como funcionário comum, sem regalias, no arquivo morto. Aproximando-se, segredou-lhe o mago que ele poderia facilmente reaver tudo o que perdera, tanto os bens materiais quanto os espirituais. Bastava comparecer a uma sessão em sua casa. A única exigência é que meu finado pai levasse junto com ele o filho varão; o mago garantiu-lhe que nada de ruim me aconteceria. Em troca, o mago queria somente dispor da vida do inimigo de meu pai.
Dada noite, fomos de táxi, de Antonina a Curitiba, pouco mais de 80km, direto à morada do mago. Meu pai vestia um terno virgem, da cabeça aos pés, ou melhor, do chapéu ao sapato. Ao chegarmos à mansão, fomos conduzidos através de corredores escuros a uma sala circular, com um pentagrama invertido desenhado no chão. Um gentil encapuzado levou-me a sentar em um banco de madeira, encostado na parede, de onde pude observar todo o ritual. Do meio do teto, amarrado pelas patas traseiras, pendia um bode de espessa pelagem negra. De tanto sangue na cabeça, olhos injetados, boca entreaberta, o pobre animal era incapaz de um balido sequer. Meu pai sentou-se numa cadeira, no centro do salão, disposta sob o bode. Entre invocações e cânticos numa língua estranha, que depois fiquei sabendo ser latim de trás para a frente, o mago puxou um afiado punhal de prata da cintura e decepou a garganta do bode. O sangue quente e grosso desceu em torrentes sobre o meu pai, o qual fora orientado a permanecer sentado, acontecesse o que acontecesse. Surgiram, então, várias dançarinas, algumas nuas, outras seminuas, e seguiu-se um bailado que, em todos os movimentos, simulava uma incessante cópula, ora com o bode, ora com meu pai, enquanto o mago, com os dentes, dilacerava galinhas vivas, cuspindo as vísceras em meu pai.
Finda a diabólica sessão, voltamos para casa no mesmo táxi, o qual permanecera à nossa espera. De acordo com o mago, meu pai teria que ficar sete dias sem tomar banho e acender durante quarenta e nove noites uma vela para Satã, levando-me consigo, para que obtivesse assim as graças do senhor das profundas.
Noite após noite, íamos religiosamente ao quintal para fazer a nossa parte, conforme as instruções do mago, mas nada de as coisas melhorarem. Assim, a impaciência de meu pai foi aumentando, chegando a fazer de malgrado as imprecações demoníacas. Exatamente na quadragésima noite, depois de cessar repentinamente um violento temporal, em vez de fazer as orações costumeiras aos seres dos confins, ensimesmado meu pai acendeu a vela e, sem como nem porquê, enfiou-a na terra, vociferando:
– Eu enfio essa vela no teu cu, seu demônio filho da puta!
– Pai!!! – exclamei eu.
O mais incrível de toda a história é que daí em diante a vida de minha família começou a melhorar a olhos vistos. Algum tempo depois, num fim de tarde, às seis horas, naquele momento em que toda a Natureza para, estávamos eu e meu pai sentados na varanda, assuntando o mar, quando sem olhar para mim, com os olhos fixos no horizonte distante, ele categórico disparou:
– Vê como as coisas são, como a nossa vida melhorou? O Diabo é viado, gosta de levar vela no cu.
Rimos à larga.
– Bem sei o que vai na tua cabeça, paspalho! – disse a voz, trazendo-me de volta à realidade presente.
Como se despertasse de um devaneio, dei um pulo para trás, pondo-me de pé, cruzando instintivamente os braços em frente ao peito.
– Os filisteus chamavam-me pelo adorável nome de Belzebu, enquanto outros tantos invocam-me como Lúcifer, que apropriadamente significa o portador da luz, da luz do conhecimento, matéria tão cara à raça humana. Um Prometeu relegado à incompreensão, enfim. Os índios dizem-me anhangá, os ribeirinhos, jurupari... Entre uma variedade enorme de nomes e alcunhas, alguns poucos me conhecem como zarapelho, de origem obscura, e de supremo mau gosto, concordo. No entanto, asseguro, meu caro, que nessa terra eu posso ser tudo, cornudo, careca, coxo, éblis, cafute, capiroto, futrico, fiote, rabudo, menos veado! – disse o coisa-à-toa, puxando feminil a pontinha da vistosa capa de cetim verde. Fez uma elegante mesura e foi-se, pisando duro, ecoando os saltos, perdão, os cascos pelas ruas estreitas de paralelepípedos.
terça-feira, 12 de janeiro de 2010
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