quarta-feira, 20 de janeiro de 2010
A VOLTA DO EXILADO
por Edson Negromonte
Recém-chegado de um exílio forçado em Londres e impedido pelas forças militares de circular pelas grandes cidades, o músico e compositor Gilberto Gil desceu uma tarde para Antonina, trazido por Negão, um dos muitos atores da Trupe Capela de Arte Popular, sediada na pequena cidade litorânea. Gil ficou hospedado durante alguns dias na casa de João Tuiuti, diretor e criador do grupo de teatro, autor de peças premiadas, como "A Espera" e "As Parcas", entre tantas outras, o qual morava bem próximo da minha casa, no bairro da Caixa d'Água. Através dele, com uma pequena atuação, participei de conceituado festival de teatro de Caruaru, onde tive a honra de conhecer o teatrólogo Paschoal Carlos Magno, bem idoso, balbuciante, mas ainda respeitado pelos jovens que o seguiam para cima e para baixo.
Todas as personalidades, locais ou nacionais, que chegavam à nossa cidade, faziam questão de conhecer Tuiuti, figura importante das letras pátrias, com títulos publicados pela Brasiliense, como "Vítimas do Mar" e "Homens e Revoluções", o juvenil "O Menino e o Imperador", e de aventuras marítimas, como uma viagem pela costa brasileira, interrompida por um naufrágio nos arrecifes de Recife, a perda dos originais de mais um romance sobre o mar, o qual nunca mais reescreveu, entregando-o de bom grado à profundeza das águas, guardado para sempre por Netuno. Várias páginas do diário de bordo foram lidas com avidez pelos jovens, publicadas no semanário O Cruzeiro, de grande circulação.
Com um disco prestes a ser lançado, do qual conhecíamos somente quatro canções, lançadas primeiro num compacto duplo, um brinde da revista Bondinho, Gilberto Gil passou toda a mornidão daquela primeira tarde e parte do frescor da noite desfiando velhos sucessos, em novas versões, em improvisações jazzísticas, seu mais recente interesse, além de brindar o seleto círculo de admiradores antoninenses com músicas ainda inéditas, as quais voltaríamos a ouvir somente alguns meses depois, após a liberação das letras pela Censura Federal. Eram tempos interessantes. Por incrível que pareça, uma simples canção, aparentemente de amor, podia conter uma mensagem cifrada ou palavras de ordem contra os generais que manipulavam a política do País. Os músicos populares, de classe média, eram os mais visados, pois a penetração das suas letras no meio estudantil universitário poderia servir de hino para uma rebelião armada. Pelo menos era nisso que os militares acreditavam, ou nos faziam crer, para desviar a atenção das manobras políticas e econômicas, da entrega das nossas riquezas naturais para o capital estrangeiro. Ou talvez tivessem medo mesmo de que os compositores, através da força da canção, fossem capazes de esclarecer as massas. Tanto que mesmo artistas realmente populares, como Odair José e Waldick Soriano, também foram censurados.
Na ocasião da visita, o músico baiano vestia-se de modo diferente, despojado, fora dos padrões: colete de crochê sobre a camiseta, calça de boca larga, meias de lã azuis e sandálias de couro, que se tornariam a marca registrada de uma juventude desbundada, avessa aos meios acadêmicos, sem a mesquinharia de partidos, consciente de que a postura libertária perante a própria vida é muito mais abrangente politicamente, cujo raio de ação compreendia (compreende) o planeta. Além da roupa, essa juventude entendia o cabelo, a fala, o movimento do corpo (mesmo permanecer imóvel podia ser uma atitude política, como os artistas da body-art o demonstraram), além de fazer uso de alucinógenos, em busca da expansão da consciência ou num total desregramento, como apregoara o poeta e artista inglês William Blake, num dos seus infernais provérbios: o caminho do excesso conduz ao palácio da sabedoria. Como essa frase grudou em minha mente! Era um tempo de descobertas, de experimentações, individuais e coletivas. Nos Estados Unidos, vários ativistas, de mãos dadas, tentaram com a força da mente levitar o Pentágono. Evidentemente que não conseguiram, mas alguns dos presentes juraram ter percebido uma vibração no prédio. O silêncio também era uma atitude política, assim como o grito, que encontrou adeptos em John Lennon e Yoko Ono, dando origem à catártica "Mother". Então, ser político era ignorar a própria política, era cair fora, estar ligado, em tudo, em todos, em si mesmo (do microcosmo ao macrocosmo); ser político era muito mais. Era misturar chiclete com banana. Ou não.
Apesar do declarado interesse pelo jazz, Gil tinha, na verdade, uma atitude rock perante a vida. Ou não. O mais tropicalista dos tropicalistas adquirira, a duras penas, a liberdade de experimentar com todos os tipos de som, desde as raízes nordestinas, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e João do Vale, passando pelo reggae, a recente novidade jamaicana, até as elucubrações sonoras do americano John Cage e do alemão Stockhausen, coisa que evidentemente ele já fazia desde os primeiros tempos, orientado pelo maestro Rogério Duprat, que o apresentou aos Mutantes, os moleques que o apresentariam ao rock. Então, se Gil já fazia isso tudo antes de voltar do exílio, qual o mérito do que ele estava fazendo atualmente? Entenda de uma vez por todas: não existe um gênero musical chamado rock. Rock é atitude. Elvis cantava rock? Não, ele cantava blues, gospel, country... Tudo embalado em uma atitude rock, que é algo libertário. Elvis, muito mais que o rebolado, tinha um olhar rock, o que fazia dele um rocker. Os Beatles faziam rock? Talvez, mas somente porque eles eram a encarnação dessa atitude, principalmente quando foram fumar maconha no banheiro da rainha, como se fossem quatro lagartas, saídas da mente suja de Lewis Carroll. Ah, então, só por causa da ganja, Bob Marley é rock, apesar de cantar reggae? Não, ele é rock porque as suas letras, mesmo as de amor, são altamente politizadas. Ele tinha a atitude libertária de quem jamais se interessou por direitos autorais. Entendeu? Legal, então me explica porque eu mesmo não entendi.
Apesar de ter amargado um exílio de dois anos na friorenta Londres, logo ele, um ser solar por natureza, Gil mostrava estar em paz, com os seus semelhantes, porque estava primeiro em paz consigo mesmo, às voltas com a descoberta da macrobiótica, com a vida natural, porém sem dispensar uma boa dose de uísque. Lembro-me de, muitos anos depois, quando ele então aparecia na TV, já Ministro da Cultura, e, vendo-o no noticiário ou em pronunciamentos, meu velho pai infalivelmente dizia, rindo:
– Ih, ih, ih, o ministro bebeu do meu uísque!
Com um violão emprestado, ele humildemente mostrava a habilidade adquirida no instrumento, principalmente a mão direita, nas intermináveis, quase sempre solitárias, sessões domésticas e nos clubes londrinos, em canjas com Weather Report, Eartha Kitt e David Gilmour, do Pink Floyd. Sempre antenado, ele regravara "Can't Find My Way Home", com Steve Winwood, do Traffic, no LP de 1971. De vez em quando, Gil passava o violão para os poucos músicos locais presentes, ouvindo pacientemente antiquadas canções com palavras de ordem contra a ditadura, em linguagem metafórica, porém óbvia, calcadas em Geraldo Vandré
Gil sempre teve perante a vida uma atitude que pode servir de modelo. Enquanto Caetano Veloso, no exílio, aparece taciturno, de ar cadavérico, na grande maioria das fotos, Gil está sempre sorridente, apesar de tudo. É insaciável a sua sede de conhecimento, de troca. É ele que chama a atenção do amigo para o reggae, a música hipnótica dos seus vizinhos. Pela primeira vez, Caetano sente-se realmente motivado e compõe "Nine Out of Ten", o primeiro reggae composto por um brasileiro, mesmo antes de Eric Clapton ter feito sucesso com "I Shot the Sheriff", de Bob Marley, e os Rolling Stones terem gravado o "Goat's Head Soup". A vontade de voltar ao Brasil, para a Bahia, para Santo Amaro da Purificação, para o colo de dona Canô, fez Caetano compor a mais triste, ainda que belíssima, canção do exílio de toda a história da música e da poesia brasileiras, "London London", eivada de banzo, a nostalgia mortal que atacava os negros trazidos da África. Por outro lado, embora composta já em solo pátrio, talvez por isso, Gil concede ao povo brasileiro "Back in Bahia", certamente também pejada de saudade, mas de um saudosismo saudável, solar, recheada de belas imagens da terra.
A breve passagem de Gilberto Gil por Antonina foi um dos acontecimentos de minha vida, quando, só de calção, magrelo, ele ia bater bola com a rapaziada no estádio da Associação Atlética 29 de Maio, o time local, entrando pelos fundos, para burlar a vigilância do guardião. Era um perna de pau, mas achava-se no direito de gritar, dar ordens, como se fosse o capitão do time. Fora do gramado, voltava à fala mansa e à postura zen, mesmo diante da única situação embaraçosa da temporada antoninense, quando inocentemente a pequena Tiare, a filha de Tuiuti, levou-lhe o primeiro e repudiado LP, de 67, para que ele autografasse. Repreendida com um olhar pelo pai, a menina recebeu em troca um sorriso carinhoso e cúmplice do músico, mesclado à placidez provocada por um singelo baseado. Sem pestanejar, Gil autografou o disco. Com uma dedicatória especial para a menina.
Em 2003, então ministro, o grande músico voltou à cidade, em visita oficial, tudo olhando, boquiaberto, admirado com a arquitetura do casario colonial, tudo observando, como se nunca tivesse realmente perambulado por essas poéticas ruas estreitas, cheias de histórias que as pessoas fazem questão de esquecer.
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Linda história. Eu sei. Eu estava lá. hehehehe
ResponderExcluirParabéns pelo blog.
Abração
Remy
Obrigado pelo post, Remy. Pois é, estávamos lá, somos também personagens da história.
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