terça-feira, 28 de setembro de 2010
O FANTASMA DA POETISA
raconto de Edson Negromonte
ilustração de Kikuchi Yosai (1781-1878)
Assim mesmo, como se a vida caminhasse a esmo, nem é bom lembrar o que foi sendo deixado para trás, as várias peles de uma cobra. Eu sempre soube, desde que entrei na escola, mas nunca tive certeza, de que viver seria rabiscar um texto, pretexto para poesia além da poesia, dizer não quando deveria dizer então, tudo bem, sei lá o quê, é isso aí, talvez amanhã, quem sabe, evasivas para manter um resquício de sanidade, sempre em busca da poesia, um tempo em que ela se insinuava com vestidos de seda e perfume de nouvelle vague, tempo de marés, tangerina das ilhas. No entanto, apesar de tudo, será para sempre o eterno aprendizado das conchas, das gaivotas, dos biguás, colhereiros, e a lama, o bicho da lama crescendo, crescendo dentro da noite de breu, as intermináveis noites de breu. As carpideiras lamentarão o corpo do bicho da lama? Nas ruas de calçadas íntimas, as baleias aguardam a ressurreição da triste argamassa. Frutos para sempre esquecidos no balcão, abacaxis. Runas, inscrições; nem Escher ousaria gravar o ritmo obscuro desse mar de lama. Ossos, ossos... nada tão exposto assim. Enquanto as torres tornam ao pó, os olhos úmidos das crianças são postos ao sol para secar. Roçarás, desta vez, a face no aço? Quem queimará contigo, último timoneiro? Átomos somam-se à toa; terror ao céu, à orquídea, à queda, e a certeza de que nenhum nenúfar espreita mais o meu espectro. É a hora aprazada, tece na trama do silêncio a inventora de lírios ao luar, de urnas negras e totens.
– Vede, saltimbancos armados à espreita! São os guardiães do templo.
– Quem é você, envolta em sombras?
– Komachi.
– A poetisa?
– Sim, a errante que desdiz os versos ainda não ditos. Espero que não durmas agora, toma do cálice e bebe. Então, restar-te-ão os dados de marfim e o rastro fugidio de um astro.
Atravessados no cavername da alma, de lado a lado, de ponta a ponta, após um gole na beberagem, foram desaparecendo, em volutas, istmos sem nome, goléns, goelas de galo, horas e horas e horas inscritas no pálio que revira o espólio dos erros.
– Contempla as romãs incandescentes em teu leito adolescente.
No espaço da página, padecer é o preço.
– Verti, porventura, em vão minhas trovas, astras de meu estro, às servas de Satã? – perguntei eu à poetisa.
– Restar-te-á a vera treva.
– Quanto tempo, os dias, e as noites, danação... Fica comigo, e faz comigo o que sei que você faz com os covardes: pólen e asfixia. Se é sina, ensina-me mais, ensina os sinais, notar os tons do ignoto.
– Ombro a ombro com a sombra, sobrar-te-á a brisa do úmbrio umbral. Peça ao poço do teu coração um pouco de eco; aos poucos, o poço ecoará: peça primeiro paciência às poças.
– Só se pode assim, extremos: copo de vinho do mais barato ou aquele, daquela festa, alquímico?
– Ferir a fibra fará raiar a rara lira.
– Quem sabe, às sombras da esquecida ilha, em vão, um dia, eu volte.
– Não te amedrontes, ousa e ressoa o som sem par da harpa dos teus próprios ossos, enquanto a aranha marinha mira o arame e arma a ária da manhã. Mês a mês, poeta aprendiz, incansável, deves apostar a messe: o maço de poemas.
– Todo dia, do tédio um tordo?
– Compreende que a natureza do poeta é exibida, abre-se suicida certa de que a vida não é vida. Às vezes, parece fácil demais, noutras nem sabe o que faz. Lembra-te que tudo é matéria de poesia: pele de cobra, escama de peixe, pedra preciosa guardada em bolso furado, agulha enferrujada, outros sóis, poeira nos cantos da casa, papel rasgado, anarquia da alma, vidraça quebrada, as jóias dentro do falcão, portas entreabertas, toque em surdina, cartazes nos muros, cartão postal, parafusos, canivete, punhal sobre a mesa, orvalho, cidades perdidas, ideogramas, soluço, mefistos, lanterna mágica, rouxinol, rouxinóis, silêncio de grilo, adagas lunares, manobra de trem, vozes que não se sabe de onde vêm, gatos vadios, degraus escorregadios, os murmúrios do bambuzal, moscas domésticas, e as varejeiras, a lona do circo, cérebros, calaminta, calêndulas, dormideira, douradinha do campo, primeiro de maio, deserto, domingos, a morbidez dos domingos, dançarinas, dançarinos, viagens espaciais, átomos em movimento, somando-se aparentemente à toa, longas caminhadas, chão forrado de jornal, fantasmas familiares, sapos em extinção, passos na poça, palácios do ócio, tudo é matéria da poesia, até a antevista lápide com o próprio nome.
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Puxa.Estou sem falas.Muito bom, é quase uma música.
ResponderExcluirque coisa mais linda, meu amigo!
ResponderExcluirEmocionante, como sempre
grande abraço
Muito lindo! *-*
ResponderExcluirdenso demais para um fantasma...:O
ResponderExcluirMuito intenso... muito bom! Obrigada pelos seus comentarios no meu blog, Edson. Sua opiniao me vale muito.
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