domingo, 31 de janeiro de 2010

JONNY QUEST, O CLÁSSICO


por Edson Negromonte

Em 18 de setembro de 1964 estreava na TV americana a criação de Doug Wildey: o primeiro desenho juvenil dos estúdios Hanna-Barbera – os responsáveis pelas melhores animações para o público infantil de televisão, apesar dos pouquíssimos movimentos e cenas repetidas à exaustão para baratear os custos de uma produção em larga escala. Justamente isso, que à primeira vista parecia um defeito para os animadores da época, acostumados aos grandes orçamentos do cinema, é que veio a ser a virtude dos desenhos infantis produzidos especialmente para a TV, para um público televisivo emergente e ávido por quantidade e alguma qualidade. Qual o garoto que não se lembra do Fred Flintstone correndo e nunca saindo do lugar, o desenho de fundo repetindo-se, dando a impressão de movimento, era um dos recursos mais utilizados pelos estúdios. Só para nos situarmos: em 1963, um dos grandes sucessos da TV era a família espacial Os Jetsons, desenho de baixo custo para o público infantil. “Jonny Quest” era a chance de se produzir um desenho com mais acetatos, além de um cuidado maior com cenários; o primeiro desenho realista dos estúdios HB. Os personagens davam-se ao luxo de piscar e os movimentos labiais procuravam ser naturais. Para uma época sem o recurso dos computadores, isso era apenas o máximo. Os custos dessa aventura romântica eram muito altos e o pouco retorno em níveis de audiência, durante a sua primeira exibição, obrigaram o cancelamento da série após 26 episódios
Jonny Quest inovou não somente na animação, mas também na temática, um misto das aventuras em quadrinhos de Tintim, das pesquisas oceanográficas de Jacques Cousteau, séries de TV, e os seriados de cinema que o criador Doug Wildey tanto admirava. Dos quadrinhos de Tintim, um jovem repórter, acompanhado do cãozinho Milou e do Capitão Haddock, criação do belga Hergé, veio o gosto de Jonny por aventuras pelo mundo, em locações tipo National Geographic Magazine. Ainda a cultura européia, através do pesquisador Jacques Cousteau, deu origem ao personagem Dr. Benton Quest, o pai de Jonny, um cientista a serviço do governo americano que acaba se envolvendo em caçadas a espiões orientais (geralmente chineses, referência ao perigo amarelo tão caro aos seriados da década de 40), velhos nazistas, monstros invisíveis, cientistas loucos (Dr. Zin, seu inimigo figadal aparece em vários episódios), além de lobisomens, gárgulas, múmias e iétis. Além dos seriados, outra paixão de Doug Wildey eram os filmes de terror dos anos 50 e os livros de ficção pseudocientífica de H.G. Wells e Júlio Verne. A série de TV “Fúria” (Fury; 1955/1958) daria origem ao personagem Roger “Race” Bannon. E até mesmo ao personagem principal. Explicando: Bannon é o tutor e guarda-costas de Jonny, assim como na série Fury, o ator Peter Graves, de precoces cabelos brancos e pinta de galã é o padrasto do menino Joey, também loiro e sempre às voltas com aventuras, somente que dentro dos limites da fazenda. Peter Graves era um ator muito famoso na época pela atuação em trash movies e séries como “Chicote” (1960/1961) e “Corte Marcial” (1966).
Ainda, como curiosidade, fazendo as vozes dos personagens secundários há atores importantes, tanto no cinema como na TV: Tol Avery, da série “The Thin Man” (57-58); Pat O’Malley, de “Meu Marciano Favorito” (63-64); Everett Sloane, de filmes para o cinema, como “Cidadão Kane” e “A Dama de Shangai”, além da série “Official Detective” (57-58) e o desenho “Mr. Magoo” (64-65); mais o incansável Keye Luke, dos seriados para o cinema “O Besouro Verde”, de 1940, como o primeiro Kato). Luke está também na sequência “The Green Hornet Strikes Again” (1940), “Adventures of Smilin’Jack” (1943), “O Agente Secreto X-9” (1945) e “Lost City of the Jungle” (1946). Na TV, Keye Luke esteve em séries “Ana e o Rei” (72), “Kung Fu” (72-75), “Harry O” (76), e muitas outras, além de fazer a voz de Charlie Chan no desenho animado (72-74) já que ele havia sido, no cinema, o filho número 1 de Charlie Chan.
Depois de tantas influências, Jonny Quest tornou-se referência obrigatória para todos os criadores posteriores. Não é à toa que John Fante, pois é, ele mesmo, o grande autor de “Pergunte ao Pó”, deu o nome de Raji ao menino indiano que acompanha Terry Bowen, o menino americano que procura o pai, perambulando pela Índia sobre o lombo de um elefante, na série de TV “Maya”. E o que dizer da recente série animada do próprio Tintim, com aventuras tiradas dos álbuns originais de Hergé, com animação explicitamente calcada na série “Jonny Quest”?

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

SALINGER


por Edson Negromonte

vai, j.d.
faz que nem j.c.
finge que não é com você

domingo, 24 de janeiro de 2010

PASTORAL BEAT

Edson Negromonte

bem sabes, convives comigo há pouco mais de ano e meio
conheço teus anseios, não vou mais ao correio
bem sabes que não sou esnobe, tampouco uso robe
durmo de cueca, vez em quando tiro meleca
apesar de tudo, de ser um bicho do mato
não me iludo, sou meio nefasto
e, quando a pressão sobe,
o remédio é bing crosby.
Ei, chefe, vê como me trata!
Não uso gravata e quero que você saiba:
sou amigo do sinatra.
Ah, senhor mendigo, nem vem que não tem,
já gastei a última nota de cem
& quando tudo fica cacete,
ponho o capacete
e saio por aí de homem-foguete

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A VOLTA DO EXILADO


por Edson Negromonte

Recém-chegado de um exílio forçado em Londres e impedido pelas forças militares de circular pelas grandes cidades, o músico e compositor Gilberto Gil desceu uma tarde para Antonina, trazido por Negão, um dos muitos atores da Trupe Capela de Arte Popular, sediada na pequena cidade litorânea. Gil ficou hospedado durante alguns dias na casa de João Tuiuti, diretor e criador do grupo de teatro, autor de peças premiadas, como "A Espera" e "As Parcas", entre tantas outras, o qual morava bem próximo da minha casa, no bairro da Caixa d'Água. Através dele, com uma pequena atuação, participei de conceituado festival de teatro de Caruaru, onde tive a honra de conhecer o teatrólogo Paschoal Carlos Magno, bem idoso, balbuciante, mas ainda respeitado pelos jovens que o seguiam para cima e para baixo.
Todas as personalidades, locais ou nacionais, que chegavam à nossa cidade, faziam questão de conhecer Tuiuti, figura importante das letras pátrias, com títulos publicados pela Brasiliense, como "Vítimas do Mar" e "Homens e Revoluções", o juvenil "O Menino e o Imperador", e de aventuras marítimas, como uma viagem pela costa brasileira, interrompida por um naufrágio nos arrecifes de Recife, a perda dos originais de mais um romance sobre o mar, o qual nunca mais reescreveu, entregando-o de bom grado à profundeza das águas, guardado para sempre por Netuno. Várias páginas do diário de bordo foram lidas com avidez pelos jovens, publicadas no semanário O Cruzeiro, de grande circulação.
Com um disco prestes a ser lançado, do qual conhecíamos somente quatro canções, lançadas primeiro num compacto duplo, um brinde da revista Bondinho, Gilberto Gil passou toda a mornidão daquela primeira tarde e parte do frescor da noite desfiando velhos sucessos, em novas versões, em improvisações jazzísticas, seu mais recente interesse, além de brindar o seleto círculo de admiradores antoninenses com músicas ainda inéditas, as quais voltaríamos a ouvir somente alguns meses depois, após a liberação das letras pela Censura Federal. Eram tempos interessantes. Por incrível que pareça, uma simples canção, aparentemente de amor, podia conter uma mensagem cifrada ou palavras de ordem contra os generais que manipulavam a política do País. Os músicos populares, de classe média, eram os mais visados, pois a penetração das suas letras no meio estudantil universitário poderia servir de hino para uma rebelião armada. Pelo menos era nisso que os militares acreditavam, ou nos faziam crer, para desviar a atenção das manobras políticas e econômicas, da entrega das nossas riquezas naturais para o capital estrangeiro. Ou talvez tivessem medo mesmo de que os compositores, através da força da canção, fossem capazes de esclarecer as massas. Tanto que mesmo artistas realmente populares, como Odair José e Waldick Soriano, também foram censurados.
Na ocasião da visita, o músico baiano vestia-se de modo diferente, despojado, fora dos padrões: colete de crochê sobre a camiseta, calça de boca larga, meias de lã azuis e sandálias de couro, que se tornariam a marca registrada de uma juventude desbundada, avessa aos meios acadêmicos, sem a mesquinharia de partidos, consciente de que a postura libertária perante a própria vida é muito mais abrangente politicamente, cujo raio de ação compreendia (compreende) o planeta. Além da roupa, essa juventude entendia o cabelo, a fala, o movimento do corpo (mesmo permanecer imóvel podia ser uma atitude política, como os artistas da body-art o demonstraram), além de fazer uso de alucinógenos, em busca da expansão da consciência ou num total desregramento, como apregoara o poeta e artista inglês William Blake, num dos seus infernais provérbios: o caminho do excesso conduz ao palácio da sabedoria. Como essa frase grudou em minha mente! Era um tempo de descobertas, de experimentações, individuais e coletivas. Nos Estados Unidos, vários ativistas, de mãos dadas, tentaram com a força da mente levitar o Pentágono. Evidentemente que não conseguiram, mas alguns dos presentes juraram ter percebido uma vibração no prédio. O silêncio também era uma atitude política, assim como o grito, que encontrou adeptos em John Lennon e Yoko Ono, dando origem à catártica "Mother". Então, ser político era ignorar a própria política, era cair fora, estar ligado, em tudo, em todos, em si mesmo (do microcosmo ao macrocosmo); ser político era muito mais. Era misturar chiclete com banana. Ou não.
Apesar do declarado interesse pelo jazz, Gil tinha, na verdade, uma atitude rock perante a vida. Ou não. O mais tropicalista dos tropicalistas adquirira, a duras penas, a liberdade de experimentar com todos os tipos de som, desde as raízes nordestinas, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e João do Vale, passando pelo reggae, a recente novidade jamaicana, até as elucubrações sonoras do americano John Cage e do alemão Stockhausen, coisa que evidentemente ele já fazia desde os primeiros tempos, orientado pelo maestro Rogério Duprat, que o apresentou aos Mutantes, os moleques que o apresentariam ao rock. Então, se Gil já fazia isso tudo antes de voltar do exílio, qual o mérito do que ele estava fazendo atualmente? Entenda de uma vez por todas: não existe um gênero musical chamado rock. Rock é atitude. Elvis cantava rock? Não, ele cantava blues, gospel, country... Tudo embalado em uma atitude rock, que é algo libertário. Elvis, muito mais que o rebolado, tinha um olhar rock, o que fazia dele um rocker. Os Beatles faziam rock? Talvez, mas somente porque eles eram a encarnação dessa atitude, principalmente quando foram fumar maconha no banheiro da rainha, como se fossem quatro lagartas, saídas da mente suja de Lewis Carroll. Ah, então, só por causa da ganja, Bob Marley é rock, apesar de cantar reggae? Não, ele é rock porque as suas letras, mesmo as de amor, são altamente politizadas. Ele tinha a atitude libertária de quem jamais se interessou por direitos autorais. Entendeu? Legal, então me explica porque eu mesmo não entendi.
Apesar de ter amargado um exílio de dois anos na friorenta Londres, logo ele, um ser solar por natureza, Gil mostrava estar em paz, com os seus semelhantes, porque estava primeiro em paz consigo mesmo, às voltas com a descoberta da macrobiótica, com a vida natural, porém sem dispensar uma boa dose de uísque. Lembro-me de, muitos anos depois, quando ele então aparecia na TV, já Ministro da Cultura, e, vendo-o no noticiário ou em pronunciamentos, meu velho pai infalivelmente dizia, rindo:
– Ih, ih, ih, o ministro bebeu do meu uísque!
Com um violão emprestado, ele humildemente mostrava a habilidade adquirida no instrumento, principalmente a mão direita, nas intermináveis, quase sempre solitárias, sessões domésticas e nos clubes londrinos, em canjas com Weather Report, Eartha Kitt e David Gilmour, do Pink Floyd. Sempre antenado, ele regravara "Can't Find My Way Home", com Steve Winwood, do Traffic, no LP de 1971. De vez em quando, Gil passava o violão para os poucos músicos locais presentes, ouvindo pacientemente antiquadas canções com palavras de ordem contra a ditadura, em linguagem metafórica, porém óbvia, calcadas em Geraldo Vandré
Gil sempre teve perante a vida uma atitude que pode servir de modelo. Enquanto Caetano Veloso, no exílio, aparece taciturno, de ar cadavérico, na grande maioria das fotos, Gil está sempre sorridente, apesar de tudo. É insaciável a sua sede de conhecimento, de troca. É ele que chama a atenção do amigo para o reggae, a música hipnótica dos seus vizinhos. Pela primeira vez, Caetano sente-se realmente motivado e compõe "Nine Out of Ten", o primeiro reggae composto por um brasileiro, mesmo antes de Eric Clapton ter feito sucesso com "I Shot the Sheriff", de Bob Marley, e os Rolling Stones terem gravado o "Goat's Head Soup". A vontade de voltar ao Brasil, para a Bahia, para Santo Amaro da Purificação, para o colo de dona Canô, fez Caetano compor a mais triste, ainda que belíssima, canção do exílio de toda a história da música e da poesia brasileiras, "London London", eivada de banzo, a nostalgia mortal que atacava os negros trazidos da África. Por outro lado, embora composta já em solo pátrio, talvez por isso, Gil concede ao povo brasileiro "Back in Bahia", certamente também pejada de saudade, mas de um saudosismo saudável, solar, recheada de belas imagens da terra.
A breve passagem de Gilberto Gil por Antonina foi um dos acontecimentos de minha vida, quando, só de calção, magrelo, ele ia bater bola com a rapaziada no estádio da Associação Atlética 29 de Maio, o time local, entrando pelos fundos, para burlar a vigilância do guardião. Era um perna de pau, mas achava-se no direito de gritar, dar ordens, como se fosse o capitão do time. Fora do gramado, voltava à fala mansa e à postura zen, mesmo diante da única situação embaraçosa da temporada antoninense, quando inocentemente a pequena Tiare, a filha de Tuiuti, levou-lhe o primeiro e repudiado LP, de 67, para que ele autografasse. Repreendida com um olhar pelo pai, a menina recebeu em troca um sorriso carinhoso e cúmplice do músico, mesclado à placidez provocada por um singelo baseado. Sem pestanejar, Gil autografou o disco. Com uma dedicatória especial para a menina.
Em 2003, então ministro, o grande músico voltou à cidade, em visita oficial, tudo olhando, boquiaberto, admirado com a arquitetura do casario colonial, tudo observando, como se nunca tivesse realmente perambulado por essas poéticas ruas estreitas, cheias de histórias que as pessoas fazem questão de esquecer.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O ENCONTRO

Edson Negromonte

Estava sem sono, como sempre. Minha eterna companheira, a insônia, fazia-me perambular pelas noites da cidade, quando as páginas de um bom livro ou os rabiscos de nanquim sobre uma folha de papel em branco não conseguiam ocupar as minhas madrugadas. Assim, vi-me na rua, andando a esmo, despreocupado. O ar quente e abafado levou-me de encontro ao mar. Debrucei-me na amurada, a ouvir o resfolegar da lama sob a ação das marés que iam e vinham. O cheiro característico das algas sobressaía no redemoinho de odores dos seres marítimos em decomposição. Observei durante bom tempo um pneu, atirado às águas, repousando incomodamente sobre o lodo negro, como se ele mesmo soubesse que aquele não era o seu lugar.
Voltei rapidamente a cabeça em direção à loja maçônica Estrela do Oriente, às minhas costas, ao ouvir um breve ruído, como o estalido de um galho seco. Sentada numa grande pedra, percebi uma silhueta. Estremeci, um calafrio percorreu-me a espinha. Confesso, senti eriçar os pelos da nuca. De onde surgira? Ao passar por ali, alguns minutos antes, não percebera ninguém. Não sou de acreditar em almas do outro mundo, nem às deste dou muito crédito, e muito menos nessas besteiras que tornam as conversas à beira do fogo mais interessantes, mas cautela nunca é demais. Olhei, de soslaio, em direção à pedra. Como a silhueta não esboçasse um movimento sequer, mantive-me também às duras penas imóvel. Com o vagaroso arrastar de alguns segundos, adquiri alguma confiança e olhei diretamente ao que eu presumia serem os seus olhos, apesar da distância. Senti um suor frio e pegajoso inundando toda a minha testa. Sim, os seus olhos faiscavam, penetrantes, ora amarelos, ora vermelhos. Petrificado, eu quis voltar-lhe as costas, sair correndo, gritar, mas tudo foi em vão. Continuei estático, sem conseguir deixar de olhar diretamente naqueles terríveis, cruéis, metálicos, infinitamente doces olhos.
Ao longe, um galo cantou. Nenhum outro galo respondeu.
Repentinamente, a noite tornou-se mais quieta que de costume.
Nos tímpanos, uma pressão surda.
– Venha, não tenhas medo... – sussurrou, suave e venerável.
Apesar de querer fugir dali, fui morosamente em direção à pedra, onde permanecia sentada a bizarra figura hipnótica. Aproximando-me, a crueldade dos olhos tornou-se quase maternal, se é que assim se pode dizer sem ofender as mães que porventura estejam me lendo. Perdoe-me você, de espírito suscetível, tem todo o direito de lançar este livro às chamas. Seria falsear a verdade se omitisse que naquele olhar libidinoso havia, ao mesmo tempo, uma indizível doçura... Somente os menos impressionáveis devem me acompanhar.
– Não me interessa o teu nome; eu o sei desde o fatídico Dia da Criação – disse ele, sorrindo matreiro.
Tentei sorrir também, mas só consegui uma maldita contração muscular.
Vi-me então às voltas com as reminiscências da adolescência, quando uma das conversas entre amigos girou em torno do Bode, do culto que a ele prestavam os maçons; do bode como representação da sabedoria, embora os mais afoitos e ignorantes atribuam-lhe o signo maligno. Desses amigos de infância, todos já tinham se mudado ou ido desta para melhor, somente eu insistira em permanecer na pequena e pacata Antonina, levando a vida como professor do único colégio da cidade. Agora, estávamos os dois ali, frente a frente, eu e o nem-sei-que-diga. Disfarçadamente aspirei o ar para sentir o característico cheiro acre de enxofre, mas sou obrigado a dizer que foi em vão. Somente o perfume inebriante do jasmineiro inundou-me as narinas. Lembrei-me então que, um dia, do alto do destemor dos meus quinze anos, alegara aos embasbacados e temerosos amigos que os cornos do bode maçônico eram, nada mais, nada menos, que a representação do conhecimento, e que o grande escultor Michelangelo representara o sábio profeta Moisés com um par de chifres. Sim, pequenos e tímidos, mas chifres.
– Estás tremendo e não está frio. Solte os braços... Ou melhor, faça como diz a canção popular: abra os braços, respire fundo e solte os laços todos deste mundo...
Deu uma sonora gargalhada o excomungado, zombando de uma das minhas músicas favoritas. Em meio a tudo isso, é mister registrar que seus dentes não eram verdes, nem podres, tampouco tinha o hálito fedorento, como eu aprendera nas aulas de catecismo. A bem da verdade, parecia mais um sorriso de propaganda de creme dental. O leitor poderá se indagar, com toda razão, como pude isso tudo perceber, apesar do escuro da noite. Com o intuito de não mentir, devo dizer que estávamos cada vez mais próximos, eu e o canhim. Não posso assegurar se eu ia a ele ou ele vinha a mim. Lembro-me bem, agora, de que estávamos os dois sentados, lado a lado, como velhos amigos. Nem tanto, apenas velhos conhecidos. Cheguei a sentir o roçagar do veludo das suas imensas asas negras em meus braços, e nas costas, no cabelo... Por um momento, admito, senti-me acolhido em seu regaço.
– Sabes que estou em tua vida há muito mais tempo que supõe a tua vã filosofia?
Como bom ouvinte, permaneci calado, a escutá-lo. Com certeza, não era o momento para fazer perguntas inúteis. Sabiamente, como bom ouvinte, deixei que continuasse, pois senti no pobre diangras a necessidade de expor as suas caraminholas.
– Lembras como, em tua Primeira Comunhão, davam ênfase à minha humilde pessoa?
Assenti com a cabeça, mecanicamente.
– Lembras da minha gravura no Catecismo, carregando uma alma inocente pela mão? Lembras de como essa imagem ficou gravada em tua mente, apesar da repugnância?
Assenti novamente.
– Acontece que habito os teus sonhos muito antes disso tudo. Pensa bem nas cantigas de ninar que embalaram o teu sono. Desde o berço, estou contigo; das crianças, eu sou o Boi da Cara Preta. No alvorecer do Homem, entre tantas outras coisas, eu fui o trovão, o Bezerro de Ouro, a Serpente no Altar...
Estremeci, mas não pude deixar de concordar que o sagaz indivíduo estava coberto de razão. Mesmo sem compreendê-lo totalmente, eu percebi no tom de voz a convicção das suas palavras.
A extrema proximidade com o ser melífluo e encantador lembrou-me de imediato um ocorrido: após perder injustamente o alto cargo que ocupava numa empresa estatal, meu pai viu-se da noite para o dia envolvido nas artimanhas de um mago negro, que o encontrou trabalhando como funcionário comum, sem regalias, no arquivo morto. Aproximando-se, segredou-lhe o mago que ele poderia facilmente reaver tudo o que perdera, tanto os bens materiais quanto os espirituais. Bastava comparecer a uma sessão em sua casa. A única exigência é que meu finado pai levasse junto com ele o filho varão; o mago garantiu-lhe que nada de ruim me aconteceria. Em troca, o mago queria somente dispor da vida do inimigo de meu pai.
Dada noite, fomos de táxi, de Antonina a Curitiba, pouco mais de 80km, direto à morada do mago. Meu pai vestia um terno virgem, da cabeça aos pés, ou melhor, do chapéu ao sapato. Ao chegarmos à mansão, fomos conduzidos através de corredores escuros a uma sala circular, com um pentagrama invertido desenhado no chão. Um gentil encapuzado levou-me a sentar em um banco de madeira, encostado na parede, de onde pude observar todo o ritual. Do meio do teto, amarrado pelas patas traseiras, pendia um bode de espessa pelagem negra. De tanto sangue na cabeça, olhos injetados, boca entreaberta, o pobre animal era incapaz de um balido sequer. Meu pai sentou-se numa cadeira, no centro do salão, disposta sob o bode. Entre invocações e cânticos numa língua estranha, que depois fiquei sabendo ser latim de trás para a frente, o mago puxou um afiado punhal de prata da cintura e decepou a garganta do bode. O sangue quente e grosso desceu em torrentes sobre o meu pai, o qual fora orientado a permanecer sentado, acontecesse o que acontecesse. Surgiram, então, várias dançarinas, algumas nuas, outras seminuas, e seguiu-se um bailado que, em todos os movimentos, simulava uma incessante cópula, ora com o bode, ora com meu pai, enquanto o mago, com os dentes, dilacerava galinhas vivas, cuspindo as vísceras em meu pai.
Finda a diabólica sessão, voltamos para casa no mesmo táxi, o qual permanecera à nossa espera. De acordo com o mago, meu pai teria que ficar sete dias sem tomar banho e acender durante quarenta e nove noites uma vela para Satã, levando-me consigo, para que obtivesse assim as graças do senhor das profundas.
Noite após noite, íamos religiosamente ao quintal para fazer a nossa parte, conforme as instruções do mago, mas nada de as coisas melhorarem. Assim, a impaciência de meu pai foi aumentando, chegando a fazer de malgrado as imprecações demoníacas. Exatamente na quadragésima noite, depois de cessar repentinamente um violento temporal, em vez de fazer as orações costumeiras aos seres dos confins, ensimesmado meu pai acendeu a vela e, sem como nem porquê, enfiou-a na terra, vociferando:
– Eu enfio essa vela no teu cu, seu demônio filho da puta!
– Pai!!! – exclamei eu.
O mais incrível de toda a história é que daí em diante a vida de minha família começou a melhorar a olhos vistos. Algum tempo depois, num fim de tarde, às seis horas, naquele momento em que toda a Natureza para, estávamos eu e meu pai sentados na varanda, assuntando o mar, quando sem olhar para mim, com os olhos fixos no horizonte distante, ele categórico disparou:
– Vê como as coisas são, como a nossa vida melhorou? O Diabo é viado, gosta de levar vela no cu.
Rimos à larga.
– Bem sei o que vai na tua cabeça, paspalho! – disse a voz, trazendo-me de volta à realidade presente.
Como se despertasse de um devaneio, dei um pulo para trás, pondo-me de pé, cruzando instintivamente os braços em frente ao peito.
– Os filisteus chamavam-me pelo adorável nome de Belzebu, enquanto outros tantos invocam-me como Lúcifer, que apropriadamente significa o portador da luz, da luz do conhecimento, matéria tão cara à raça humana. Um Prometeu relegado à incompreensão, enfim. Os índios dizem-me anhangá, os ribeirinhos, jurupari... Entre uma variedade enorme de nomes e alcunhas, alguns poucos me conhecem como zarapelho, de origem obscura, e de supremo mau gosto, concordo. No entanto, asseguro, meu caro, que nessa terra eu posso ser tudo, cornudo, careca, coxo, éblis, cafute, capiroto, futrico, fiote, rabudo, menos veado! – disse o coisa-à-toa, puxando feminil a pontinha da vistosa capa de cetim verde. Fez uma elegante mesura e foi-se, pisando duro, ecoando os saltos, perdão, os cascos pelas ruas estreitas de paralelepípedos.