por Edson Negromonte
lá, onde o sol
se esconde, onde a
tônica do dia descansa,
a oeste,
ela deita-se,
solta ao tato dos dedos
delicados da noite.
Sei lá se isso é sedição,
se é cena de cine,
se é o destino
lanceando
as teias de seda
na ânsia
de alcançar
o teto da nação.
Sei lá se é a tentação
dos ícones
soando o sonido distante
do oceano onisciente.
Sei,
isso é certo,
da danação,
da coleta do ócio,
das densidades,
do teclado celestino,
as centenas de teclas
dando de ti,
do sítio onde estás,
Antonina,
notícias dos dias de inocência,
as notícias do sal.
Tocas,
de dedos cotos,
a testa dos iniciados
na ciência do lodo.
Antonina,
de seios ansiosos,
na ânsia do leite,
esticas
as tetas salinas
ao cais onde caí,
onde ainda decaem
os acólitos de ti.
– Edson,
nasceste do sal,
do lodo,
descendes das tocas,
tens o soldo do iodo.
segunda-feira, 20 de dezembro de 2010
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
TUDO NA MULHER AMADA
por Edson Negromonte
tudo na mulher amada é doce
qual cartas de nora a joyce
não só a voz o leite a boca
mesmo que pareça coisa pouca
a língua as orelhas os olhos
cabelo sobrancelhas
pescoço os seios o osso
o nariz o queixo os braços
umbigo quadris as costas
ancas a vagina as coxas
a bunda o ânus a pele
axilas joelhos as pernas
pentelhos
os pés dedos artelhos
as mãos
os cheiros a alma o coração
tudo na mulher amada é doce
qual cartas de nora a joyce
não só a voz o leite a boca
mesmo que pareça coisa pouca
a língua as orelhas os olhos
cabelo sobrancelhas
pescoço os seios o osso
o nariz o queixo os braços
umbigo quadris as costas
ancas a vagina as coxas
a bunda o ânus a pele
axilas joelhos as pernas
pentelhos
os pés dedos artelhos
as mãos
os cheiros a alma o coração
quarta-feira, 24 de novembro de 2010
CAIBRA
por Edson Negromonte
desenho de Federico Fellini
A primeira paisagem de Antonina, para quem chega por terra, é a zona de meretrício, no km 4. Antigamente, a zona era dividida em pobre e rica. A parte rica, conhecida como boate, era servida por mulheres jovens e bonitas, às vezes música ao vivo e uísque de origem duvidosa, paraguaio. A boate era frequentada pelos figurões locais, onde eles faziam questão de comemorar o aniversário, com o consentimento das esposas, mas depois da festinha em casa, junto à família. Isso nos anos 70, outros tempos. Voltando recentemente à cidade, percebi algo estranho: a boate não existe mais. Mas o que me deixou mais intrigado ainda foi o desaparecimento do morro no qual ela ficava instalada, como a guardiã moral dos cidadãos antoninenses. Como pode um morro sumir assim, sem mais nem menos? Perguntei aos amigos sobre o mistério da boate, do desaparecimento do morro e evasivas quase todas as respostas. A única plausível é a de que, depois que a boate foi extinta, devido à derrocada do movimento portuário, o morro foi tragado pela voracidade dos tratores das cidades vizinhas. Lembro-me, na década de 1980, enquanto comia um sonho na Lanchonete do Osvaldo, de receber das mãos de um cafetão um convidativo cartão: Pigalle, good girls, good drinks, good nights. Não pude deixar de sorrir diante da singeleza do inglês econômico, que eficiente dava o recado, tal e qual um velho blues. Dá até para imaginar John Lee Hooker, pedras entre os dentes podres, engrolando o refrão good gils, good drinks, good nights.
Talvez em decorrência da parte rica da zona se chamar Pigalle é que a parte pobre se chamasse Picão, assim apelidada por algum gozador. Até hoje o Picão está lá, encolhido, envergonhado, meia dúzia de casas de madeira, sem pintura recente, escuras, descascadas, entregue às moscas, porém resistente, as mulheres modorrentas sentadas à porta. Na adolescência, íamos, eu, Luiz Henrique, Geraldo, Maurício e Chico, ao Picão, em busca de diversão, bagunça, ar de malvados, tomar umas cervejas, dar risada à toa. Ninguém comia ninguém, estávamos quase sempre duros e a pouca grana que pintava era destinada às novidades do rock, Alice Cooper, David Bowie, Marc Bolan, Gary Glitter, o último do Pink Floyd.
A personalidade mais importante da zona era a Caibra, dona de uma das casas do Picão. Sempre atenta, olhos inquietos, um olho cuidava do gato enquanto o outro fritava bolinho, de vestidos vistosos, a boca rebocada de um vermelho incerto, gorda, excessivamente gorda, felliniana, Caibra era uma lenda para qualquer garoto. Além de lembrar as figuras dos filmes de Fellini, Caibra também remetia à "Balada da Gorda Margô", de François Villon, o poeta putanheiro. Corria, à boca pequena, que Caibra era mãe de uma moça belíssima, criada por uma família da cidade. Às vezes, ela ia visitar a filha, levar presentes, regalos, matar a saudade. Entre as famílias antoninenses era comum adotar os filhos das mulheres da vida, o que garantia um futuro melhor para as crianças.
Uma vez, já embriagado e, por isso mesmo, mais confiante, fui tirar uma onda com a Caibra que, outrora prestadora de bons serviços à população e à marinhagem, agora idosa, não transava com mais ninguém, somente administrando a casa e as suas meninas. Estava ela sentada a uma das mesas, com a mão gorda de dedos curtos pousada sobre o tampo, vigilante. Não sei por que cargas d'água, pareceu-me convidativa a velha senhora. Ora, para a minha cabeça tomada pelo álcool transar com a puta mais lendária de Antonina (até Maneco Diabo se referia a ela com respeito), seria um troféu. Romântico, como só um poeta maldito ousa ser, pousei delicadamente, como um namorado, minha mão sobre a mão da pachorrenta rameira, um convite para levá-la ao leito. Caibra revidou a carícia do cabeludo que eu era com um violento tapaço em minha mão boba. Refeito do susto, dei de cara com o olhar risonho de uma avó zombeteira.
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terça-feira, 16 de novembro de 2010
CARA DE CHUVA
por Edson Negromonte
Este era o apelido de Reinaldo: Cara de Chuva, e que só vinha tornar mais evidente a tristeza, a profunda tristeza da sua fisionomia. Embora o apelido lhe caísse bem, eu sempre o chamei pelo nome, conhecia o rapaz bem antes de os antoninenses o terem apelidado de maneira tão maldosa, porém nunca vi um apelido calhar tão bem a alguém. Chamá-lo de Cara de Chuva era, para mim, evidenciar ainda mais essa tristeza intrínseca que todos os homens, especialmente Reinaldo, carregam. Ele era funcionário do Banco do Brasil, levado por meu pai a assumir uma posição melhor, a chefia do câmbio, na agência da cidade de Antonina, no Paraná. Depois do expediente, Reinaldo enchia a cara, e isso não é força de expressão, ia peregrinando de boteco em boteco até acabar na zona de meretrício, onde ficava o único bar aberto toda a madrugada. Nunca se soube de uma única falta de Reinaldo ao serviço, era um funcionário exemplar, cordato, atencioso.
Numa dessas madrugadas em que não se consegue conciliar o sono, estava eu sentado no meio-fio, no cruzamento das ruas Dr. Carlos Gomes da Costa e Conselheiro Alves de Araújo, às voltas com os questionamentos da adolescência, quando vejo a distância a figura cambaleante vindo em minha direção. Não restava a menor dúvida, só podia ser ele: Reinaldo. Sentou-se ao meu lado, dizendo com voz engrolada:
- Eu bebo, você sabe que eu bebo, mas nunca bebi o juízo.
Olhei-o com um sorriso condescendente e, pela primeira vez, à luz difusa da iluminação da rua (ah, as noites de breu de Antonina), eu percebi, em sua face, a dor profunda de um homem. Toda a tristeza mostrava-se em suas sobrancelhas negras, espessas, caídas em demasia nas extremidades, líquidas.
- Eu bebo desde pequeno, de criancinha. Meu avô tinha alambique, lá em Ponte Nova, antiga Fazenda da Manteiga, eu era o experimentador oficial das cachaças do velho. Por isso, o meu fígado é resistente, eu tenho resistência ao álcool, não fico bêbado nunca...
Parou repentinamente de falar, perscrutando a noite.
- Edson, você já conhece o meu filho?
- Não, ainda não.
- Vamos lá em casa, pra você ver o bichinho.
- Deixa pra outro dia.
- Não, eu faço questão.
- Já é muito tarde, a Lúcia deve estar dormindo.
- Você não vai me fazer uma desfeita dessas.
- Reinaldo, a Lúcia ainda tá de quarentena...
Tanto ele insistiu que acabei indo conhecer o menino, entrando pé ante pé na casa quieta, adormecida. No berço, a sono solto, o herdeiro do meu orgulhoso amigo.
- Ainda não sei que nome dar a ele. Pensei em White Horse, nome forte, de índio, pra ser um vencedor; Johnny Walker também é bom. O que você acha? É, acho que vai ser Johnny Walker mesmo, mas, como eu sou nacionalista, o apelido vai ser Tatuzinho. Ou Pitu?
Este era o apelido de Reinaldo: Cara de Chuva, e que só vinha tornar mais evidente a tristeza, a profunda tristeza da sua fisionomia. Embora o apelido lhe caísse bem, eu sempre o chamei pelo nome, conhecia o rapaz bem antes de os antoninenses o terem apelidado de maneira tão maldosa, porém nunca vi um apelido calhar tão bem a alguém. Chamá-lo de Cara de Chuva era, para mim, evidenciar ainda mais essa tristeza intrínseca que todos os homens, especialmente Reinaldo, carregam. Ele era funcionário do Banco do Brasil, levado por meu pai a assumir uma posição melhor, a chefia do câmbio, na agência da cidade de Antonina, no Paraná. Depois do expediente, Reinaldo enchia a cara, e isso não é força de expressão, ia peregrinando de boteco em boteco até acabar na zona de meretrício, onde ficava o único bar aberto toda a madrugada. Nunca se soube de uma única falta de Reinaldo ao serviço, era um funcionário exemplar, cordato, atencioso.
Numa dessas madrugadas em que não se consegue conciliar o sono, estava eu sentado no meio-fio, no cruzamento das ruas Dr. Carlos Gomes da Costa e Conselheiro Alves de Araújo, às voltas com os questionamentos da adolescência, quando vejo a distância a figura cambaleante vindo em minha direção. Não restava a menor dúvida, só podia ser ele: Reinaldo. Sentou-se ao meu lado, dizendo com voz engrolada:
- Eu bebo, você sabe que eu bebo, mas nunca bebi o juízo.
Olhei-o com um sorriso condescendente e, pela primeira vez, à luz difusa da iluminação da rua (ah, as noites de breu de Antonina), eu percebi, em sua face, a dor profunda de um homem. Toda a tristeza mostrava-se em suas sobrancelhas negras, espessas, caídas em demasia nas extremidades, líquidas.
- Eu bebo desde pequeno, de criancinha. Meu avô tinha alambique, lá em Ponte Nova, antiga Fazenda da Manteiga, eu era o experimentador oficial das cachaças do velho. Por isso, o meu fígado é resistente, eu tenho resistência ao álcool, não fico bêbado nunca...
Parou repentinamente de falar, perscrutando a noite.
- Edson, você já conhece o meu filho?
- Não, ainda não.
- Vamos lá em casa, pra você ver o bichinho.
- Deixa pra outro dia.
- Não, eu faço questão.
- Já é muito tarde, a Lúcia deve estar dormindo.
- Você não vai me fazer uma desfeita dessas.
- Reinaldo, a Lúcia ainda tá de quarentena...
Tanto ele insistiu que acabei indo conhecer o menino, entrando pé ante pé na casa quieta, adormecida. No berço, a sono solto, o herdeiro do meu orgulhoso amigo.
- Ainda não sei que nome dar a ele. Pensei em White Horse, nome forte, de índio, pra ser um vencedor; Johnny Walker também é bom. O que você acha? É, acho que vai ser Johnny Walker mesmo, mas, como eu sou nacionalista, o apelido vai ser Tatuzinho. Ou Pitu?
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sexta-feira, 29 de outubro de 2010
O POETA DO SÉCULO XIX E A MUSA
por Edson Negromonte
a partir da antologia Grandes Poetas da Língua Inglesa do Século XIX, de José Lino Grünewald
– Cinco verões estiveste em silêncio...
– A sonolência selou meu espírito, fui-me para os montes em busca do palácio do prazer insuspeitado, lutei com nada e nada valeu a lida – sussurrou a musa.
– Ó, alma enferma!
– Não existe mais a filha da beleza, a posteridade não mais há de rever a dama esguia e lívida.
– Por ti, as fontes mesclaram-se à música dos rios, por ti...
– Ó espírito frágil, ó ser mortal, tive eu também temores em cessar de ser.
– Negros vapores oprimem já as planícies.
– Que te pode ainda doer?
– A dor propalada por todos os clarins do céu, a prole do tempo, de lábios hesitantes e som mutilado, eis o que me faz ainda sofrer.
– Bem sabes que eu te vi uma vez, só uma, anos atrás, nos salões de baile da mente, sem teres ainda o aspecto do espectro da falsa manhã.
– Lágrimas, as inúteis lágrimas imergirão no futuro.
– Ora dorme, carmim, a pétala.
– Ó, Inglaterra, de mar cinzento, e longa terra escura.
– Por muito tempo ainda, os caranguejos rastejarão frios nas colinas.
– Murmúrios da morte celestial.
– A ti, acorrerão apressadas as correntes humanas, príncipe dos comedores de lótus.
– Serei, então, o artífice do continente indissolúvel? – perguntou o poeta.
– Pobre diabo, o mar está calmo esta noite. Para mim, que nunca vi o urzal, a palavra está morta.
Porque não pode parar a morte no longo declínio das rosas, acordou e sentiu, no abismo de si mesmo, a inevitável queda escura.
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terça-feira, 19 de outubro de 2010
O TAPETE
texto de Edson Negromonte
foto de Luiz Henrique Ribeiro da Fonseca
e como varreria tudo para baixo do tapete se nem tapete eu tenho? Houve um tempo que acreditei que a poeira vinha dos desertos, que o pó depositado nos cantos da casa avoenga, ora avultante e arenosa, era apenas resquício, resíduo de um deserto particular, interior, intransferível, destinado. Isso, ah, isso foi há muitos, muitos anos atrás quando eu ainda acreditava em tuaregues à espreita, acampados no quintal das gordas goiabas vermelhas, vermes maduros, tempo em que o povo do deserto, montado em grandes, enormes, gigantescos camelos amarelos, assaltava os meus olhos através da tela estelar do Cine Ópera, escondido na avenida central de uma minúscula cidade à beira do mar. Um dia, o povo do deserto, de salteadores, de assalto, seccionou-me os olhinegros. Na mesma sessão, a decisiva sessão de cinema, o povo do deserto desapareceu entre as nuanças do nunca mais. Aos poucos, capítulo a capítulo, a miraculosa luz do sol foi devolvendo-me a visão, uma visão a mim estranha, estrangeira, à qual eu não estava acostumado, que não me pertencia, mas que tornou-se minha, à qual ainda não me acostumei completamente, embora me permita ver as gravuras do povo do deserto, muito embora eu não o reconheça nas gravuras falseadas de um povo nômade e arisco que não mais existe, se é que um dia existiu, desde que levou os meus olhos: o prêmio de uma cegueira cinéfila, cultivada. Dias quentes, inclementes, noites intransigentes, não pude mais ver, sequer perceber por trás do diáfano véu das dançarinas, sentindo somente o odor terrível das cabras do povo do deserto. Hoje, a visão recuperada, não a anterior, mas a adquirida, o que resta de tudo o que intuí é o sentimento da lâmina aguda a cortar a córnea, da lâmina gélida, o aço da cimitarra a cortar a córnea. O que me consola é a consciência de que um menino cego, da mesma idade que eu, a mesma idade que eu tinha àquela época, também abandonado pelos deuses, dará com os meus olhos num dos muitos cantos empoeirados do antigo Cine Ópera, o qual atende agora pelo pomposo nome de Theatro Municipal. Como eu poderia varrer isso tudo para baixo de um, mesmo que fictício, tapete?
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sexta-feira, 8 de outubro de 2010
A ILHA DE SÃO BRAVO
por Edson Negromonte
Viver na menor ilha do Arquipélago dos Atobás, após ter se cansado dos grandes centros, agitados, populosos, asfixiantes, tinha certamente outras vantagens além da tão propalada, nos dias de hoje, vida saudável, próxima da natureza, ou seja, para o intelectual de índole selvagem que ele era, o ócio criativo... uma sopa de bagre fresco, o cultivo doméstico do manjericão e uma noção mais elástica do tempo, tempo para morrer como bem entendesse, morte que ele sentia mais próxima do que desejava, um câncer lhe corroía lenta e obstinadamente as entranhas. Em contrapartida, havia o inevitável distanciamento dos produtos culturais, como se isso fosse possível para alguém amamentado pelo tubo de imagem da TV. A anedota preferida, nas rodas de amigos, era contar pela milésima vez que sua ama-de-leite tinha sido Lucille Ball. Não que isso fosse de todo mentira, ele era fanático pela cultura televisiva, as séries americanas, principalmente “I Love Lucy”, sobre a qual chegou a ser considerado, nos meios editoriais, um expert. Em seus planos, havia a decisão de finalmente revisar e enfeixar num único volume todos os artigos escritos sobre a série, espalhados pela imprensa do país. A insatisfação levou-o não a uma ilha totalmente deserta (coisa que ele mesmo não suportaria, apesar da proclamada dificuldade de convivência com os semelhantes), mas à ilha de São Bravo, de poucos habitantes, na grande maioria pescadores. E não há, então, como não trazer à tona o famoso verso de John Donne: “nenhum homem é uma ilha”, o qual conecta-se rapidamente a Ernest Hemingway, que usou-o como epígrafe do romance “Por Quem os Sinos Dobram”, de 1940, o que causou certa celeuma. A crítica o acusou de mentiroso ao atribuí-lo a Donne, assegurando que Hemingway pretendia mostrar uma erudição que, na realidade, não possuía e que, além do mais, o citado verso nem existia na obra do cultuado poeta inglês; a crítica da época, rancorosa, não conseguia engolir o sucesso popular de Hemingway. Invejosos, acusavam o autor de “O Sol Também Se Levanta” de ignorante. Mas, como sempre, pregadora de peças, a história tratou de colocar Hemingway no devido lugar. E, sem vasculhar revistas e jornais antigos, alguém é capaz de sequer lembrar o nome de algum crítico que espinafrou Papá Hemingway? Sem perda de tempo, o melhor é ler ou reler “O Velho e o Mar” ou “Paris é uma Festa”, ou outro que lhe aprouver. Será sempre um grande prazer a leitura de qualquer texto de Hemingway, um conto considerado menor e mesmo o romance inacabado “Ilhas da Corrente”. Nem a poesia, faceta pouco conhecida de Hemingway, praticada esporadicamente desde a juventude, pode passar hoje desapercebida.
Gregório, de apelido Grego, não se insularia em Cuba, como Papá, nem nas Marquesas, como Paul Gauguin, mas em São Bravo, incipiente colônia de pescadores do litoral paranaense, o seu “mares do Sul” particular, bem como Jorge Luis Borges refugiou-se na cegueira cultivada no apartamento de Buenos Aires. Pena que Hemingway, depois de tudo, tenha morrido em Ketchum, no Idaho, e Borges em Genebra. Somente Gauguin, coerente, morreria em Hiva Oa, nas Marquesas, legando aos nativos a herança da sífilis. No início, logo ao mudar, Grego ia quase todos os dias ao trapiche em busca das histórias dos velhos pescadores, somente para descobrir que isso não passava de romantismo juvenil; não há mais os intrépidos trabalhadores do mar, tão bem descritos por Victor Hugo, e nem o mar era ou seria mais o mesmo, os grandes cardumes tornam-se cada vez mais escassos, devido à pesca predatória, tanto por parte dos pequenos quanto dos grandes barcos pesqueiros, de redes assassinas, de malhas estreitas. Talvez por falta de tato, a conversa mais longa que Grego conseguiu entabular com a gente do mar foi sobre a série de TV “Bonanza”, o mesmo nome de uma escuna oriunda de Cananeia. Evidentemente bêbado, com cara de poucos amigos, o capitão engrolara algumas palavras sobre os Cartwright, o velho Ben, Little Joe, Adam e o grandalhão Hoss. Além da casmurrice, algo em comum havia entre ele e o capitão. Lembrou-se imediatamente de uma noite longínqua quando, ao atravessar uma praça de São Paulo, descortinara o elo perdido entre ele e o mendigo que lhe pedia um troco, ao responder que estava “durango”. O mendigo, alcoolizado, fez sinal de positivo e, ao longe, com uma gargalhada, completou: - Durango Kid!; o caubói de preto era o herói preferido da infância de Grego. Talvez fosse também uma boa lembrança da infância do mendigo. Raro momento, num lampejo, os dois estavam irmanados para sempre, assim como ele e o capitão da escuna, apesar de isso ser irrelevante na vida prática. Também o aviador e navegador Alain Gerbault não se sentiu unido aos meninos taitianos nas sessões de faroeste, do cinema local, conforme relatado em “O Evangelho do Sol”?
No mês de março, a filha mais moça de Grego, sempre preocupada com o bem-estar do pai, enviou-lhe alguns filmes: “Eraserhead”, “A Árvore dos Tamancos”, “Sidarta” e “Cría Cuervos”, mas principalmente “Robinson Crusoé”, de Buñuel, piada mais que evidente, porém oportuna. A visão do diretor espanhol para a clássica história do náufrago sempre foi, para Grego, admirador da obra de Daniel Defoe, uma incômoda lacuna. Há pouco mais de um mês, na surrada bicicleta amarela, o carteiro trazia outra encomenda, também recheada de filmes, presente do desenhista Leonardi, responsável pela quadrinização das peripécias de Toninho do Diabo. Neste novo pacote, títulos preciosos, como “The Notorious Bettie Page”, “Rio de Jano”, “Diabolik”, a animação do Corto Maltese, entre outros, os quais Grego assistiu com a voracidade daqueles que sentem a dama de negro cada vez mais próxima. Agradável surpresa foi “Anti-herói Americano”, a cinebiografia de Harvey Pekar, morto recentemente, que o transportou a uma tarde chuvosa em que ele e Leonardi foram assistir a um documentário sobre o cartunista Robert Crumb, um dos seus ídolos. Claro que, como todos os garotos, eles tinham tido Batman e Super-homem, mas nenhum deles era carregado na garupa por uma mulher grandalhona. Para coroar a sessão, ao saírem do cinema, depararam com uma morena muito bem fornida, idêntica a Angel Food McSpade, a popular personagem crumbiana.
Na quarta-feira passada, de barco, Grego foi buscar quatro caixotes de livros, no correio da ilha principal, despachados por Viriato. Neles, uma parte preciosa da sua vida: “O Homem no Teto”, de Jules Feiffer; “Pinocchio: Aventuras Maravilhosas de um Boneco de Pau”, publicado pela Livraria Francisco Alves, em 1925, com as ilustrações originais, bem diversas da versão disneyana; o álbum “El Corazón Delator”, adaptação noir do conto de Poe, pelo pincel de Alberto Breccia, edição serigráfica, numerada e assinada; “A Metamorfose”, de Kafka, ilustrada por Walter Lewy; “Fome”, de Knut Hamsun, em tradução de Carlos Drummond de Andrade; “Um e Dois”, do poeta José Lino Grünewald; “O Mez da Grippe”, de Valêncio Xavier; “Deus da Chuva e da Morte”, de Jorge Mautner, autografada; a coleção completa das tirinhas da Mafalda, e tantos outros que enumerá-los linha a linha, com os caracteres originais, poderia bem se transformar num longo poema dadaísta, à moda de Picabia. Era-lhe agradável imaginar a escritura de tal poema, a disponibilidade de tempo, o ócio levava-o a exercitar uma poesia de invenção. Esses livros estiveram bem guardados, sob os cuidados do amigo, desde a mudança de Grego para a ilha de São Bravo. Com a vinda do bebê, Viriato precisou desocupar espaço no pequeno apartamento em que morava com a namorada.
Como alguém tão afeito a uma cultura adquirida, de segunda, terceira mão, pode ter a pretensão de se irmanar ao homem rude que tira o sustento das profundezas do mar? Enquanto Grego folheia distraído o enfadonho, cultuado e tantas vezes protelado “Ulisses”, de James Joyce, no silêncio da madrugada, os pingos da chuva principiam a dedilhar no telhado “A Little Help from My Friends”.
Viver na menor ilha do Arquipélago dos Atobás, após ter se cansado dos grandes centros, agitados, populosos, asfixiantes, tinha certamente outras vantagens além da tão propalada, nos dias de hoje, vida saudável, próxima da natureza, ou seja, para o intelectual de índole selvagem que ele era, o ócio criativo... uma sopa de bagre fresco, o cultivo doméstico do manjericão e uma noção mais elástica do tempo, tempo para morrer como bem entendesse, morte que ele sentia mais próxima do que desejava, um câncer lhe corroía lenta e obstinadamente as entranhas. Em contrapartida, havia o inevitável distanciamento dos produtos culturais, como se isso fosse possível para alguém amamentado pelo tubo de imagem da TV. A anedota preferida, nas rodas de amigos, era contar pela milésima vez que sua ama-de-leite tinha sido Lucille Ball. Não que isso fosse de todo mentira, ele era fanático pela cultura televisiva, as séries americanas, principalmente “I Love Lucy”, sobre a qual chegou a ser considerado, nos meios editoriais, um expert. Em seus planos, havia a decisão de finalmente revisar e enfeixar num único volume todos os artigos escritos sobre a série, espalhados pela imprensa do país. A insatisfação levou-o não a uma ilha totalmente deserta (coisa que ele mesmo não suportaria, apesar da proclamada dificuldade de convivência com os semelhantes), mas à ilha de São Bravo, de poucos habitantes, na grande maioria pescadores. E não há, então, como não trazer à tona o famoso verso de John Donne: “nenhum homem é uma ilha”, o qual conecta-se rapidamente a Ernest Hemingway, que usou-o como epígrafe do romance “Por Quem os Sinos Dobram”, de 1940, o que causou certa celeuma. A crítica o acusou de mentiroso ao atribuí-lo a Donne, assegurando que Hemingway pretendia mostrar uma erudição que, na realidade, não possuía e que, além do mais, o citado verso nem existia na obra do cultuado poeta inglês; a crítica da época, rancorosa, não conseguia engolir o sucesso popular de Hemingway. Invejosos, acusavam o autor de “O Sol Também Se Levanta” de ignorante. Mas, como sempre, pregadora de peças, a história tratou de colocar Hemingway no devido lugar. E, sem vasculhar revistas e jornais antigos, alguém é capaz de sequer lembrar o nome de algum crítico que espinafrou Papá Hemingway? Sem perda de tempo, o melhor é ler ou reler “O Velho e o Mar” ou “Paris é uma Festa”, ou outro que lhe aprouver. Será sempre um grande prazer a leitura de qualquer texto de Hemingway, um conto considerado menor e mesmo o romance inacabado “Ilhas da Corrente”. Nem a poesia, faceta pouco conhecida de Hemingway, praticada esporadicamente desde a juventude, pode passar hoje desapercebida.
Gregório, de apelido Grego, não se insularia em Cuba, como Papá, nem nas Marquesas, como Paul Gauguin, mas em São Bravo, incipiente colônia de pescadores do litoral paranaense, o seu “mares do Sul” particular, bem como Jorge Luis Borges refugiou-se na cegueira cultivada no apartamento de Buenos Aires. Pena que Hemingway, depois de tudo, tenha morrido em Ketchum, no Idaho, e Borges em Genebra. Somente Gauguin, coerente, morreria em Hiva Oa, nas Marquesas, legando aos nativos a herança da sífilis. No início, logo ao mudar, Grego ia quase todos os dias ao trapiche em busca das histórias dos velhos pescadores, somente para descobrir que isso não passava de romantismo juvenil; não há mais os intrépidos trabalhadores do mar, tão bem descritos por Victor Hugo, e nem o mar era ou seria mais o mesmo, os grandes cardumes tornam-se cada vez mais escassos, devido à pesca predatória, tanto por parte dos pequenos quanto dos grandes barcos pesqueiros, de redes assassinas, de malhas estreitas. Talvez por falta de tato, a conversa mais longa que Grego conseguiu entabular com a gente do mar foi sobre a série de TV “Bonanza”, o mesmo nome de uma escuna oriunda de Cananeia. Evidentemente bêbado, com cara de poucos amigos, o capitão engrolara algumas palavras sobre os Cartwright, o velho Ben, Little Joe, Adam e o grandalhão Hoss. Além da casmurrice, algo em comum havia entre ele e o capitão. Lembrou-se imediatamente de uma noite longínqua quando, ao atravessar uma praça de São Paulo, descortinara o elo perdido entre ele e o mendigo que lhe pedia um troco, ao responder que estava “durango”. O mendigo, alcoolizado, fez sinal de positivo e, ao longe, com uma gargalhada, completou: - Durango Kid!; o caubói de preto era o herói preferido da infância de Grego. Talvez fosse também uma boa lembrança da infância do mendigo. Raro momento, num lampejo, os dois estavam irmanados para sempre, assim como ele e o capitão da escuna, apesar de isso ser irrelevante na vida prática. Também o aviador e navegador Alain Gerbault não se sentiu unido aos meninos taitianos nas sessões de faroeste, do cinema local, conforme relatado em “O Evangelho do Sol”?
No mês de março, a filha mais moça de Grego, sempre preocupada com o bem-estar do pai, enviou-lhe alguns filmes: “Eraserhead”, “A Árvore dos Tamancos”, “Sidarta” e “Cría Cuervos”, mas principalmente “Robinson Crusoé”, de Buñuel, piada mais que evidente, porém oportuna. A visão do diretor espanhol para a clássica história do náufrago sempre foi, para Grego, admirador da obra de Daniel Defoe, uma incômoda lacuna. Há pouco mais de um mês, na surrada bicicleta amarela, o carteiro trazia outra encomenda, também recheada de filmes, presente do desenhista Leonardi, responsável pela quadrinização das peripécias de Toninho do Diabo. Neste novo pacote, títulos preciosos, como “The Notorious Bettie Page”, “Rio de Jano”, “Diabolik”, a animação do Corto Maltese, entre outros, os quais Grego assistiu com a voracidade daqueles que sentem a dama de negro cada vez mais próxima. Agradável surpresa foi “Anti-herói Americano”, a cinebiografia de Harvey Pekar, morto recentemente, que o transportou a uma tarde chuvosa em que ele e Leonardi foram assistir a um documentário sobre o cartunista Robert Crumb, um dos seus ídolos. Claro que, como todos os garotos, eles tinham tido Batman e Super-homem, mas nenhum deles era carregado na garupa por uma mulher grandalhona. Para coroar a sessão, ao saírem do cinema, depararam com uma morena muito bem fornida, idêntica a Angel Food McSpade, a popular personagem crumbiana.
Na quarta-feira passada, de barco, Grego foi buscar quatro caixotes de livros, no correio da ilha principal, despachados por Viriato. Neles, uma parte preciosa da sua vida: “O Homem no Teto”, de Jules Feiffer; “Pinocchio: Aventuras Maravilhosas de um Boneco de Pau”, publicado pela Livraria Francisco Alves, em 1925, com as ilustrações originais, bem diversas da versão disneyana; o álbum “El Corazón Delator”, adaptação noir do conto de Poe, pelo pincel de Alberto Breccia, edição serigráfica, numerada e assinada; “A Metamorfose”, de Kafka, ilustrada por Walter Lewy; “Fome”, de Knut Hamsun, em tradução de Carlos Drummond de Andrade; “Um e Dois”, do poeta José Lino Grünewald; “O Mez da Grippe”, de Valêncio Xavier; “Deus da Chuva e da Morte”, de Jorge Mautner, autografada; a coleção completa das tirinhas da Mafalda, e tantos outros que enumerá-los linha a linha, com os caracteres originais, poderia bem se transformar num longo poema dadaísta, à moda de Picabia. Era-lhe agradável imaginar a escritura de tal poema, a disponibilidade de tempo, o ócio levava-o a exercitar uma poesia de invenção. Esses livros estiveram bem guardados, sob os cuidados do amigo, desde a mudança de Grego para a ilha de São Bravo. Com a vinda do bebê, Viriato precisou desocupar espaço no pequeno apartamento em que morava com a namorada.
Como alguém tão afeito a uma cultura adquirida, de segunda, terceira mão, pode ter a pretensão de se irmanar ao homem rude que tira o sustento das profundezas do mar? Enquanto Grego folheia distraído o enfadonho, cultuado e tantas vezes protelado “Ulisses”, de James Joyce, no silêncio da madrugada, os pingos da chuva principiam a dedilhar no telhado “A Little Help from My Friends”.
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terça-feira, 28 de setembro de 2010
O FANTASMA DA POETISA
raconto de Edson Negromonte
ilustração de Kikuchi Yosai (1781-1878)
Assim mesmo, como se a vida caminhasse a esmo, nem é bom lembrar o que foi sendo deixado para trás, as várias peles de uma cobra. Eu sempre soube, desde que entrei na escola, mas nunca tive certeza, de que viver seria rabiscar um texto, pretexto para poesia além da poesia, dizer não quando deveria dizer então, tudo bem, sei lá o quê, é isso aí, talvez amanhã, quem sabe, evasivas para manter um resquício de sanidade, sempre em busca da poesia, um tempo em que ela se insinuava com vestidos de seda e perfume de nouvelle vague, tempo de marés, tangerina das ilhas. No entanto, apesar de tudo, será para sempre o eterno aprendizado das conchas, das gaivotas, dos biguás, colhereiros, e a lama, o bicho da lama crescendo, crescendo dentro da noite de breu, as intermináveis noites de breu. As carpideiras lamentarão o corpo do bicho da lama? Nas ruas de calçadas íntimas, as baleias aguardam a ressurreição da triste argamassa. Frutos para sempre esquecidos no balcão, abacaxis. Runas, inscrições; nem Escher ousaria gravar o ritmo obscuro desse mar de lama. Ossos, ossos... nada tão exposto assim. Enquanto as torres tornam ao pó, os olhos úmidos das crianças são postos ao sol para secar. Roçarás, desta vez, a face no aço? Quem queimará contigo, último timoneiro? Átomos somam-se à toa; terror ao céu, à orquídea, à queda, e a certeza de que nenhum nenúfar espreita mais o meu espectro. É a hora aprazada, tece na trama do silêncio a inventora de lírios ao luar, de urnas negras e totens.
– Vede, saltimbancos armados à espreita! São os guardiães do templo.
– Quem é você, envolta em sombras?
– Komachi.
– A poetisa?
– Sim, a errante que desdiz os versos ainda não ditos. Espero que não durmas agora, toma do cálice e bebe. Então, restar-te-ão os dados de marfim e o rastro fugidio de um astro.
Atravessados no cavername da alma, de lado a lado, de ponta a ponta, após um gole na beberagem, foram desaparecendo, em volutas, istmos sem nome, goléns, goelas de galo, horas e horas e horas inscritas no pálio que revira o espólio dos erros.
– Contempla as romãs incandescentes em teu leito adolescente.
No espaço da página, padecer é o preço.
– Verti, porventura, em vão minhas trovas, astras de meu estro, às servas de Satã? – perguntei eu à poetisa.
– Restar-te-á a vera treva.
– Quanto tempo, os dias, e as noites, danação... Fica comigo, e faz comigo o que sei que você faz com os covardes: pólen e asfixia. Se é sina, ensina-me mais, ensina os sinais, notar os tons do ignoto.
– Ombro a ombro com a sombra, sobrar-te-á a brisa do úmbrio umbral. Peça ao poço do teu coração um pouco de eco; aos poucos, o poço ecoará: peça primeiro paciência às poças.
– Só se pode assim, extremos: copo de vinho do mais barato ou aquele, daquela festa, alquímico?
– Ferir a fibra fará raiar a rara lira.
– Quem sabe, às sombras da esquecida ilha, em vão, um dia, eu volte.
– Não te amedrontes, ousa e ressoa o som sem par da harpa dos teus próprios ossos, enquanto a aranha marinha mira o arame e arma a ária da manhã. Mês a mês, poeta aprendiz, incansável, deves apostar a messe: o maço de poemas.
– Todo dia, do tédio um tordo?
– Compreende que a natureza do poeta é exibida, abre-se suicida certa de que a vida não é vida. Às vezes, parece fácil demais, noutras nem sabe o que faz. Lembra-te que tudo é matéria de poesia: pele de cobra, escama de peixe, pedra preciosa guardada em bolso furado, agulha enferrujada, outros sóis, poeira nos cantos da casa, papel rasgado, anarquia da alma, vidraça quebrada, as jóias dentro do falcão, portas entreabertas, toque em surdina, cartazes nos muros, cartão postal, parafusos, canivete, punhal sobre a mesa, orvalho, cidades perdidas, ideogramas, soluço, mefistos, lanterna mágica, rouxinol, rouxinóis, silêncio de grilo, adagas lunares, manobra de trem, vozes que não se sabe de onde vêm, gatos vadios, degraus escorregadios, os murmúrios do bambuzal, moscas domésticas, e as varejeiras, a lona do circo, cérebros, calaminta, calêndulas, dormideira, douradinha do campo, primeiro de maio, deserto, domingos, a morbidez dos domingos, dançarinas, dançarinos, viagens espaciais, átomos em movimento, somando-se aparentemente à toa, longas caminhadas, chão forrado de jornal, fantasmas familiares, sapos em extinção, passos na poça, palácios do ócio, tudo é matéria da poesia, até a antevista lápide com o próprio nome.
segunda-feira, 20 de setembro de 2010
JÚLIO
por Edson Negromonte
Desta cama, onde estou estendido há pouco mais de dois anos, posso observá-lo. Nada digo, as palavras há muito não vêm à minha boca. Ele também nada diz, sujeitando-se a me observar diariamente, religiosamente à mesma hora, quando chega em casa do trabalho. Acostumei-me, é o único membro da família que ainda vem me ver. Sei, pelos pequenos ruídos, quase imperceptíveis, pelos cheiros, ocasionais, que minhas irmãs ainda vivem no velho casarão da Rua Florêncio. Às crianças foi terminantemente proibida a entrada em meu quarto. O visitante habitual olha-me mais curioso que apiedado, os olhos negros não o permitem mentir. Iludem-se aqueles que dizem ser os olhos escuros impenetráveis; pelo menos os de Júlio não o são. Não para mim, que o criei como se fosse meu filho. Quando chegou à nossa casa, Júlio era uma criança calada, de quatro anos, vindo de um dos muitos lares desfeitos do fim da Guerra. Cresceu, tornou-se homem, não parou de crescer, até hoje cresce, alguns milímetros por ano. Ou será que, daqui de baixo, eu o vejo maior do que realmente é? Sempre de paletó, camisa de gola olímpica, chova ou faça sol, a vasta cabeleira negra, ele tem deixado a barba crescer, enquanto a minha é feita diariamente pelo enfermeiro. Para que todo esse cuidado com a barba, se ela crescerá sem cuidados após a minha morte? Às vezes, Júlio entreabre a boca; parece querer dizer algo importante, mas cala-se. Se soubesse o quanto isso me incomoda, o quanto me constrange, ele diria besteiras, palavras sem nexo, emitiria um som qualquer. Ah, se ele soubesse o quanto preciso ouvir a sua voz, o timbre característico, antes que a minha hora chegue. Nenhum de meus músculos é capaz de fazê-lo entender que necessito ouvir a sua voz, estou imóvel nesta cama, somente meus olhos têm alguma vida, apesar de não poder mais derramar uma lágrima sequer. Nem por Júlio, nem por mim. Sinto a vida presente em meu corpo através dos movimentos involuntários, o bater do coração, a pulsação do sangue, as fezes, a urina. A sensação da urina quente saindo pelo pênis, escorrendo pela perna, encharcando o pijama, o colchão, chega a ser reconfortante, chegando às raias da gratificação, apesar do constrangimento. Acredito que o fedor de mijo repugna Júlio, mas ele sabe muito bem que o enfermeiro só pode vir pela manhã. As tardes, eu passo sozinho, colecionando palavras, decompondo-as mentalmente, em exercício anagramático, avarento: uma por dia. O pior é que o meu cérebro insiste em se manter vivo, não há nada que possa submetê-lo à apatia, por mais que eu tenha tentado. Se isso fosse possível, tenho certeza absoluta de que sobreviria a morte, a tão desejada companheira. Queria poder perguntar a Júlio se há no dicionário a palavra requietório, não sei o significado, veio-me à cabeça a noite passada, logo depois que ele se retirou do quarto, fechando a porta sem ruído. Não demora e Júlio logo chegará do banco. Ele, então, ficará me olhando durante muito tempo com aqueles olhos miúdos e negros, mais curioso que apiedado.
sexta-feira, 10 de setembro de 2010
MESTRE E DISCÍPULO
por Edson Negromonte
– Em dias assim não se abre a janela da frente, como dizem os atlantes.
– Os atlantes?!
– Sim, alguns de nós têm conexão direta com eles.
– Mas os atlantes, se é que existiram, desapareceram há muito tempo.
– Isso é o que pensa a grande maioria da humanidade.
– Como assim?
– Os atlantes nunca deixaram de existir.
– Explique melhor, mestre.
– Os atlantes, assim como outros povos anteriores, estão entre nós, e nossos olhos... nossos sentidos estão ainda incapacitados para vê-los. O que posso dizer, no atual estágio da sua evolução, é que eles estão entre nós, sim, e jamais deixaram de estar.
– Mas, e o cataclismo da Atlântida?
– Houve, realmente houve, mas somente uma parte da civilização atlante pereceu, uma grande parte, é verdade, conforme várias obras antigas dão conta, inclusive a Bíblia; a passagem do dilúvio nada mais é que isso. Aqueles que mereciam sobreviver migraram para outras terras, para formar novas civilizações ou fazer avançar povos que necessitavam dos seus avançados conhecimentos. A religião monoteísta do Antigo Egito é nada mais, nada menos, do que aquilo que os atlantes entendiam como o deus único.
– Minha cabeça, a minha respiração...
– Os atlantes jamais desaparecerão, os seus ensinamentos fazem parte do nosso dia-a-dia. O sol, por exemplo, muito antes de ser o símbolo egípcio por excelência, representativo do deus onisciente, já o era na Atlântida. E os atlantes que morreram quando o continente submergiu, reencarnaram nas Américas, o continente americano é a reencarnação da Atlântida.
– ?
– E o governo mundial, que em breve há de vir, será exercido pelos atlantes, um único governo para todos os povos. Num futuro não muito distante, haverá um único governo, como sonhou Napoleão Bonaparte, e haverá também uma única cor de pele, muitas crianças já estão nascendo com o indício da nova cor, é só prestar atenção. Mas isso é muito difícil para a compreensão do cientista e dos religiosos que, tão apegados a preconceitos e dogmas, a tudo de novo rebatem prontamente.
– Mestre...
– Mas, antes disso, muitas catástrofes ainda acontecerão, a revolução que antecede a evolução, a lei natural: o monte de lixo terá antes de ser revolvido para, então, ser removido.
– Mestre, só uma coisa, posso abrir a janela?
– A janela nunca esteve fechada.
– Que janela, mestre?
– Não se faça de tolo!
domingo, 5 de setembro de 2010
PO&CIA.
por Edson Negromonte
guardados no guarda-roupa
o casaco de flanela de whitman
a blusa amarela de maiakovski
o xale xadrez de emily dickinson
os sapatos de lama de webern
o chapéu de lado de lautrec
a calça rota de edgar poe
ainda não sou poe-
ta
mas,
daí,
então,
talvez,
um dia,
eu saiba
tudo aquilo
que
o poeta de província já sabia
guardados no guarda-roupa
o casaco de flanela de whitman
a blusa amarela de maiakovski
o xale xadrez de emily dickinson
os sapatos de lama de webern
o chapéu de lado de lautrec
a calça rota de edgar poe
ainda não sou poe-
ta
mas,
daí,
então,
talvez,
um dia,
eu saiba
tudo aquilo
que
o poeta de província já sabia
sábado, 4 de setembro de 2010
A TAL DA POESIA
por Edson Negromonte
quando se está perdido no espaço
e não há mais um túnel do tempo
não adianta espernear nem gritar
o som já não se propaga no ar
a vida não é um disco do pink floyd
e seu papai nem é mais irwin allen
acabou a adolescência
você caiu de pára-quedas
na terra dos gigantes
& se não cuidar
vai acabar no fundo do mar
uma viagem só de ida
e nem será ida lupino,
muito menos lupe cotrim
mas o loup-garou
de olho no seu cu
quando se está perdido no espaço
e não há mais um túnel do tempo
não adianta espernear nem gritar
o som já não se propaga no ar
a vida não é um disco do pink floyd
e seu papai nem é mais irwin allen
acabou a adolescência
você caiu de pára-quedas
na terra dos gigantes
& se não cuidar
vai acabar no fundo do mar
uma viagem só de ida
e nem será ida lupino,
muito menos lupe cotrim
mas o loup-garou
de olho no seu cu
quinta-feira, 2 de setembro de 2010
POESIA, MINHA FILHA
por Edson Negromonte
poesia, minha filha, é a resposta que darias
à embalagem esquecida no beco da gralha,
ao cavalo sem dentes na beira da estrada,
à barata de nome gregor samsa no teu quarto
poesia, minha filha, é a resposta que darias
ao pássaro cego da canção popular,
às pegadas deixadas na lama amarela,
à pedra que eu te trouxe de presente
poesia, minha filha, é a resposta que darias
à goteira sobre a lareira acesa,
ao último biscoito na lata de biscoitos,
ao postal que te mandei do vale do pavão
poesia, minha filha, é a resposta que darias
aos filhos bastardos de jean-jacques rousseau,
ao mofo nas paredes brancas de uma casa quase branca,
ao velho italiano sentado no banco das praças
poesia, minha filha, é a resposta que darias
àquela estrela anã na galáxia distante,
ao rimbaud traficante de armas,
ao rio marimbondo
poesia, minha filha, é a resposta que darias
à porta entreaberta,
à lâmpada queimada,
à casa em nantucket
poesia, minha filha, é a resposta que darias
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
AS DEUSAS DO CINEMA AMERICANO
por Edson Negromonte
as deusas do cinema americano são mulheres de celulóide,
não têm mais carnes azuis, nem bocas vermelhas.
As deusas do cinema americano olham-me assustadas
como se eu fosse o canibal faminto de um desenho animado,
as deusas do cinema americano são belas e irreais
como uma tragada de rita hayworth.
Tetas enormes, tácteis, sedosas,
as deusas do cinema americano,
as mulheres das capas de revista, sempre sorridentes,
parecem infláveis e até confiáveis.
Ah, não são para o meu bico,
mesmo porque eu vou pelas ruas do terceiro mundo
e, a cada uma que passa, digo uma graça.
& o dia está ganho se ela se acha
quinta-feira, 26 de agosto de 2010
O RETRATO DE JOEY RAMONE
por Edson Negromonte
Acordara disposto a terminar o retrato. Olhando melhor, sentado em frente ao cavalete, a suspeita se confirmava: a madame estava a cara do Joey Ramone; só ele sabia o quanto lhe era custoso pintar retratos de gente esnobe que, só porque está pagando, pensa que pode comprar a beleza que, na realidade, não possui, transformando o artista em criminoso. Suspirou fundo, acendeu um baseado, entreabriu a janela da sala. Segurou a fumaça o mais que pode, precisava fazer logo a cabeça para encarar mais um dia. O prazo estava vencido, logo ela telefonaria para saber se estava pronta “a grande obra”, assim a madame se referia ao quadro, terminando a frase num cacarejo. De que os ricos riem tanto? Até que não estava mau... para um retrato de Joey Ramone. Ele precisava de grana, não podia se dar ao luxo de pintar o retrato de um roqueiro morto que não interessava a ninguém. Não tinha sido assim com as telas de Eros Volúsia, Boris Karloff e Tintim? Onde estariam esses quadros agora? Provavelmente esquecidos nos porões de uma galeria qualquer, amontoados como lixo. Poderia começar outro retrato da socialite, mas isso já estava dando nas nervos, não aguentava mais gastar a vida que sabia pouca pintando retratos da grã-finagem local, invariavelmente mal pagos. Como os maridos são capazes de pechinchar, depreciar, até o pintor se sentir mal e muitas vezes entregar o trabalho por preço de custo. Tá bom, não vamos discutir, me paga só o material. Era assim que se encerravam as negociações, o golpe de misericórdia, um pedido de clemência. O que ele faria com uma tela sob encomenda, de gente empoada? Pintar por cima? Não, recusava-se a isso.
O que fizera dos sonhos? Quem o conhecia, sabia que a vida não lhe fora madrasta, e o eterno problema de um teto estava garantido, morava de graça no antigo apartamento da irmã mais velha. As necessidades básicas de Artur Araripe eram poucas: uma substanciosa refeição diária, cigarros e maconha, sem a qual não conseguia se entender. Eventualmente um litro de Sangue de Boi, acompanhado da inevitável dor de cabeça do dia seguinte, que o deixava prostrado; então ele tirava o dia para dormir. Na pensão Vidor, onde fazia as refeições, gostava da companhia de Gilda à mesa; sempre calado, o travesti o fazia divagar, construir mentalmente uma caixa retangular, negra, a silhueta de Rita Hayworth recortada; no fundo da caixa, a foto de dois ciclistas desconhecidos. No alto, o bonequinho do Dick Tracy, de capa amarela, sugerindo o mistério a ser resolvido. Um crime? Tinha consciência da obviedade do título, “Nunca mais um traveco como Gilda”. Criaria as mais disparatadas teorias sobre o objeto, evocando o desesperado Glenn Ford. Ah, a infatigável arte de inventar teorias sobre os seus trabalhos, títulos que invariavelmente remetiam à literatura, música, cinema. E à própria história da arte. Não fora assim com “O Pássaro do Ciúme Sobrevoa o Paraíso”, “Drácula Mon Amour”, “A Mulher-Gorila Só Come Pipoca de Microondas”, “Solo de Sax para Doris Day”? Assim também com “A Felicidade”: sobre fundo vermelho, uniforme, dois revólveres, calibre 38, de frente um para o outro, a sugerir um 69. No vernissage, quando o banqueiro e a esposa aproximaram-se, intrigados com a tela, disparara “a felicidade é como a gota de orvalho”, o lapidar verso de Vinicius. Ou “happiness is a warm gun”, de Lennon, para a jovenzinha coquete, encantada por estar conversando com o artista arredio, avesso a aglomerações, mas que dera o ar da graça à coletiva. Por que ele agia assim? Autodestrutivo, Artur Araripe vivia com a arma apontada para a própria cabeça; antes que alguém pensasse em destruí-lo, ele já tinha apertado o gatilho.
Precisava terminar o retrato da madame, prometera a si mesmo não pedir mais um centavo à irmã, a única pessoa que ainda o compreendia. Desde a morte do pai, ela tomara a peito o encargo de cuidar do irmão. Pianista frustrada, o casamento abortara a carreira promissora de Mercedes, a vinda dos filhos, as responsabilidades domésticas, o dia-a-dia insípido. O irmão era tudo para ela, a oportunidade de realização, mundo ao qual só os dois tinham acesso. Com a mudança para o Alto da Glória e a boa situação do marido, Mercedes deixara o apartamento para Artur; no leito de morte, o pai pediu-lhe que jamais abandonasse o irmão, que não o deixasse à deriva, que o protegesse de si mesmo. O relacionamento de Artur e Mercedes era quase incestuoso, ela fora o seu primeiro modelo vivo, todas as mulheres que Artur pintava tinham um quê da irmã, ora os olhos claros, castanhos, quase verdes, ora a boca vermelha, entreaberta, convidativa. Os seios das musas eram sempre os seios pequenos e eternamente redondos de Mercedes. Bem que Artur tentou superar a fixação, casando-se. A primeira mulher não tinha nada a ver com ele, sabia que não a amava. Ela tentou inúmeras vezes compreendê-lo, a barreira era intransponível. Após quatro anos de tédio, separaram-se, sem brigas, nem recriminações, sem filhos, nada em comum, como se não tivessem passado pela vida um do outro. Apesar disso, sem saber porquê, choraram na despedida. Outros três relacionamentos amorosos aconteceram, mais fugazes ainda, rápidos como um ato sexual na zona, porque a fila anda, como diria a dona da casa. Vacinado, Artur não admitiu mais ninguém em seu mundinho particular. Como todo artista precisa de paixões para produzir, principalmente as platônicas, enamorou-se de Catherine Deneuve, Anita Ekberg e Marilyn Monroe, todas volúveis, fúteis, propensas à traição. Somente Mercedes era capaz de amá-lo sem nada pedir em troca.
Enganando a si mesmo, Artur precisava acreditar que realizaria a grande obra, digna da genuína aspiração de deixar um legado para a humanidade. Sim, “A Grande Ceia Marciana”! Por que não pensara nisso antes? Como ponto de partida, “A Santa Ceia” de Leonardo da Vinci; no lugar dos apóstolos, alienígenas como os dos cards “Marte Ataca”. Em primeiro plano, pelo chão, embalagens de sabão em pó Omo, Rinso, Minerva, latas de Nescau, Toddy, Ovomaltine, salgadinhos Elma Chips, salsichas Sadia, Sonhos de Valsa, Marlboro etc, os patrocinadoresdo encontro sagrado. Nas paredes, pôsteres de Jimi Hendrix, Che Guevara, Hitler, Ginger Rogers, Rasputim, Mary Osmond, Monkees, Garibaldo... À mesa, uma garrafa de Coca-cola. De grandes proporções, a garrafa, a tela. Tinha de pensar grande, como fazia Picasso. Reacendeu o baseado, a fim de clarear as ideias, ver mais longe. Sim, “A Grande Ceia Marciana” seria a sua obra-prima. Ah, utilizaria as várias referências de toda uma vida que até então lhe parecera insossa. Como Hitchcock, Artur também estaria presente ao inusitado banquete, disfarçado, nada evidente, talvez escondido em baixo da mesa, deixaria sim vários enigmas a serem decifrados pelos arqueólogos. Como na música eletrônica, agiria como um sampler, o mundo como um grande banco de dados. Sim, a verdadeira arte teria de atuar em consonância com o procedimento das outras artes, principalmente a música. Eureca, Leonardo, além de pintor, tinha sido músico, o inventor de novos instrumentos para a nova música. Dodecafônica, serial, tonal, atonal, aleatória, samplear o velho e o novo. Leonardo não tinha sido também cientista? Infatigável, descobrira a grande e a pequena circulações do sangue, dissecando cadáveres roubados, na calada da noite, dos cemitérios. Sim, Artur utilizaria as novas descobertas industriais, a tinta automotiva, de maior durabilidade e cores metálicas. Era isso, sim, o nome Artur Araripe estaria inscrito na história da arte mundial. Nenhum crítico mais poderia se referir à arte do século 21 sem citar Artur Araripe. Deu uma puxada profunda no fumo e teve, então, a grande, fenomenal ideia: a assinatura, para sempre indelével, seria uma esplêndida ejaculada sobre toda a obra, o gozo do artista incompreendido preservaria para toda a eternidade o seu DNA, com o qual os cientistas dos séculos futuros pudessem clonar um novo Artur Araripe, quem sabe, Araripes, sim, Araripes aos montes, às mancheias, indispensáveis à renovação de uma arte estagnada. Porque, após isso, a arte jamais seria a mesma. Daí, cortaria os pulsos. Não, isso não, cortar os pulsos é coisa de empregada doméstica. Quem sabe, cortasse o pau após a obra finda. Só, se esvairia em sangue, o grand finale. Não, isso não, não podia dar mais trabalho a Mercedes. Tinha de pensar numa morte limpa, não menos apoteótica. E se se enforcasse, como Ian Curtis? Com uma ponta de satisfação, imaginou a irmã lavando o sangue coagulado do assoalho, chorando a perda, maldizendo-o, a impossibilidade de limpar os vãos entre os tacos. Não, ela não se daria ao trabalho, contrataria uma faxineira. Pena que ele não veria a cena. O que estava dizendo? Não, não podia dar tal desgosto à irmã, a pequena Mercedes dos seios eternamente redondos. Embevecido, entorpecido, “A Grande Ceia Marciana”, a obra-prima, a glória eterna, Artur deambulava, viajava, arrastando-se pantanoso através do tempo espectral que nem as ampulhetas podem medir.
O toque insistente do telefone trouxe-o de volta.
- Alô?
- Oi, grande artista, o meu retrato está pronto?
- Quem é, Joey Ramone?
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segunda-feira, 16 de agosto de 2010
O NICROMANTE
por Edson Negromonte
cara a cara com o marítimo rocinante, remiro-me. Ora o mar é ocre, o ritmo monótono é ornato no cemitério interior. Antonina, eternamente momentânea. Na cama macia, antônima ao tormento, a amante amara contrai a cona e ri. Narcoticamente, recito à cítara e rio. Amortecimento, trapo roto é manto ao tétrico crime. O crânio, oco, retornará na maré e ecoará, na câmara arcana, o amor eterno. Nem no Antero inteiro, na camoniana, em Marino, Caeiro, Marinetti, encontrarei comércio. Nem na mão de Monet, no cinema, na cinira, nem no teorema, nem no teatro nô... A memória, caótica trará à tona o crânio e atônito encontrarei, na areia, a cimitarra. Miramarina Antonina, a coar o cancro mnemônico. O metrônomo no átrio é iminente a noite. Creio no crânio, a arca, mito e romance, o ícone em mármore. Camorra e mentira, retiniana Antonina. Errata, carma, carne iniciática, nomeio-te matéria. Macera a mirra, corrimento.
Cometi o crime: amei-te, amei o mar, o nácar, o oceano.
Toma, na areia, a arma tinta; corta-me. A mônada, imanente. No entreato,
retira-te. Irmana-me ao cimento.
Cão maior! Coroa! Carneiro! Octante! Câncer! Órion! Raptem-me! Naco a naco, raptem-me.
Anciã, rica em ócio, canaã-anã, trapaceira, irmã, onírica Antonina, a artrite
torna-te torta.
Ao oriente, a tormenta.
Ancora, cetácea, ancora!
Nem rota, nem timoneiro, nem carta, temo a cética e cretina Antonina.
No mirante, a mãe totêmica.
Âncora! Ática. América. Circe. Trácia. Criméia. Cananéia. Tera. Marte. Ciméria.
Terra, terra.
Atraca, Caronte, na terra acre e íntima, a coríntia Antonina.
No meretrício, intimo-te, rameira: ama-me. Catarro e amônia.
O retirante, errático, retorna a remo à mítica Antonina.
Reitera o crime.
Torre, minarete, mar ártico, antártico, titã, conto morar (ironia), na tetânica Antonina.
Não, ai, mãe, corta-me, então, a córnea, corta-me ao meio, torna-me areia marmórea, minério, átomo, matemática. Morto, cremem a mim, enterrem-me no camotim. Em amém, a monotonia teima em corroer a romã.
Rareia o carmim.
Cinéreo canoeiro...
Monocrômica, anacrônica, atraente, arcaica Antonina, não amei-te ao meio, amei-te à maneira inteira; tem-me em conta, atira-me ao trinta e cinco.
cara a cara com o marítimo rocinante, remiro-me. Ora o mar é ocre, o ritmo monótono é ornato no cemitério interior. Antonina, eternamente momentânea. Na cama macia, antônima ao tormento, a amante amara contrai a cona e ri. Narcoticamente, recito à cítara e rio. Amortecimento, trapo roto é manto ao tétrico crime. O crânio, oco, retornará na maré e ecoará, na câmara arcana, o amor eterno. Nem no Antero inteiro, na camoniana, em Marino, Caeiro, Marinetti, encontrarei comércio. Nem na mão de Monet, no cinema, na cinira, nem no teorema, nem no teatro nô... A memória, caótica trará à tona o crânio e atônito encontrarei, na areia, a cimitarra. Miramarina Antonina, a coar o cancro mnemônico. O metrônomo no átrio é iminente a noite. Creio no crânio, a arca, mito e romance, o ícone em mármore. Camorra e mentira, retiniana Antonina. Errata, carma, carne iniciática, nomeio-te matéria. Macera a mirra, corrimento.
Cometi o crime: amei-te, amei o mar, o nácar, o oceano.
Toma, na areia, a arma tinta; corta-me. A mônada, imanente. No entreato,
retira-te. Irmana-me ao cimento.
Cão maior! Coroa! Carneiro! Octante! Câncer! Órion! Raptem-me! Naco a naco, raptem-me.
Anciã, rica em ócio, canaã-anã, trapaceira, irmã, onírica Antonina, a artrite
torna-te torta.
Ao oriente, a tormenta.
Ancora, cetácea, ancora!
Nem rota, nem timoneiro, nem carta, temo a cética e cretina Antonina.
No mirante, a mãe totêmica.
Âncora! Ática. América. Circe. Trácia. Criméia. Cananéia. Tera. Marte. Ciméria.
Terra, terra.
Atraca, Caronte, na terra acre e íntima, a coríntia Antonina.
No meretrício, intimo-te, rameira: ama-me. Catarro e amônia.
O retirante, errático, retorna a remo à mítica Antonina.
Reitera o crime.
Torre, minarete, mar ártico, antártico, titã, conto morar (ironia), na tetânica Antonina.
Não, ai, mãe, corta-me, então, a córnea, corta-me ao meio, torna-me areia marmórea, minério, átomo, matemática. Morto, cremem a mim, enterrem-me no camotim. Em amém, a monotonia teima em corroer a romã.
Rareia o carmim.
Cinéreo canoeiro...
Monocrômica, anacrônica, atraente, arcaica Antonina, não amei-te ao meio, amei-te à maneira inteira; tem-me em conta, atira-me ao trinta e cinco.
sábado, 7 de agosto de 2010
TUBE, O PEQUENO NOTÁVEL
por Edson Negromonte
foto de Eduardo Nascimento
Ao saber do falecimento de Tube, em 17 de maio deste ano, através do blog do Jeff Picanço, não pude deixar de sentir que uma parte importante de mim estava se extinguindo também. Sim, sentimental eu sou. Veio-me, daí, a melodia esfarrapada de um tango antigo que o pândego cantava a plenos pulmões nas memoráveis madrugadas capelistas de minha adolescência.
tango, bandoneón, uma guitarra que geme
num ritmo de amor desesperado
um cabaré que fecha suas portas
uma rua de amor e de pecado
Ao chegar a Antonina, no último ano da década de 1960, foi ele o primeiro vagabundo original com o qual tomei contato. De estatura baixa, pernas curtas, franzino, pele morena, olhos verdes faiscantes, sorriso matreiro, Tube inundava os finais de noite com o seu vozeirão, cantando o primeiro tango que eu, roqueiro empedernido, fã dos Rolling Stones, viria a gostar, não tanto pelo ritmo ou letra, mas porque todas as vezes em que, perdido na azáfama da vida, necessitei de um fulcro, foi a essa grata lembrança que eu recorri. Em frente ao Cine Ópera, cinco amigos aproveitavam os últimos dias das férias escolares de final de ano quando uma sombra foi se agigantando lentamente. Ao erguer a cabeça em direção ao dono da sombra, dei de encontro com os olhos mais vivazes e intimadores que eu já tinha visto.
– Não vem de garfo que hoje é dia de sopa! – disse inopinadamente Tube, alcoolizado.
Esta era uma das tiradas prediletas dele, marcante; as máximas de Tube estão por merecer uma antologia, como está ocorrendo com as inscrições do Profeta Gentileza, no Rio de Janeiro, antes que se percam no torvelinho do dia-a-dia. Em outras ocasiões saía-se com “Não vem de escada que o incêndio é no porão” ou “Eu quero é comer o gorduroso” ou “Passarinho que dorme com morcego acorda de cabeça para baixo” ou “Não vou amadurecer banana pra morcego”, entre tantas outras. Entenda-se máxima pela ótica kantiana, ou seja, “princípio escolhido livremente para servir de norma de conduta”.
um guarda que vigia numa esquina
um casal que anda à procura de um hotel
um resto de melodia
um assobio, uma saudade imortal,
Carlos Gardel
Naquela inesquecível noite, no final de fevereiro, a primeira informação que tive sobre Tube é de que ele tinha sido um dos confeiteiros mais conceituados de Santos (além de marítimo, sapateiro, barbeiro, artista de circo etc., mas isso eu vim saber muito tempo depois). Como a grande maioria dos boêmios, a bebida lhe arrebatava as forças e, de uma hora para outra, ele mandava tudo pelos ares e caía de vez na gandaia.
Carlos Gardel,
Buenos Aires cantava no teu canto
Buenos Aires chorava no teu pranto
e vibrava em tua voz,
Carlos Gardel
Este é um dos casos mais notórios do anedotário do pequeno notável, contado e recontado por várias gerações. De madrugada, os companheiros de farra entraram num galinheiro, para afanar uma penosa. Na escuridão, às apalpadelas, escolheram logo a mais robusta e deram no pé, antes que o dono acordasse com a barulheira. Ao chegar em casa, descobriram que tinham roubado um galo mas, além do mais, o galo de briga, de estimação, do Acrísio. Sem pestanejar, ainda bêbados, mataram o campeão e o cozinharam. O que torna o caso hilário é que ainda tiveram o desplante de convidar o dono do galo para saborear o ensopado. Ao saber de tudo, o desespero de Acrísio deu origem a um chorinho, composto por Tube, que ele de vez em quando cantava, somente em ocasiões especiais, e a pedidos insistentes. A letra do chorinho eu não lembro mais, deixo o resgate para alguém de memória melhor, talvez Bozinho, o cronista oficial da cidade.
o teu canto era a batuta de um maestro
que fazia pulsar os corações
na amargura das tuas melodias
De outra feita, aconteceu de Tube desaparecer. Todos se perguntando por onde ele andaria, acabou gerando as mais disparatadas histórias. Algum tempo depois, eis que surge o gaiato, de terno e gravata, cabelo penteado, gomalinado, Bíblia debaixo do braço, olhos mais flamejantes que a espada do Senhor, como se tocado pelo Espírito Santo, recitando versículos do livro sagrado, muito bem colocados e condizentes com os comentários impertinentes de Maneco Diabo e Johnny Saci, dois galhofeiros de marca maior. A vida de pastor evangélico durou pouco, os fiéis acabaram descobrindo que os sermões inflamados de Tube eram feitos sob o efeito do álcool, da pinga que ele guardava no armarinho do altar. Assim, Tube viu-se forçado a retornar à convivência com os pecadores, seus semelhantes.
Carlos Gardel,
se cantavas a tragédia das perdidas
compreendendo suas vidas
perdoavas seu papel
Depois de mudar de Antonina, nunca deixei de visitar a cidade. Em uma dessas idas, perto das eleições municipais, fui presenteado com um “santinho” de Tube, o camarada era candidato a vereador. Pena que tenha perdido, o povo antoninense não teve sensibilidade suficiente para eleger um igual. De outra vez deparei com um quadro de Tube, e eu sequer supunha que ele tivesse aptidão para as artes plásticas: sobre uma prancha retangular de madeira tosca, ele colara várias cabeças de bonecas, envelhecidas, escurecidas, enfileiradas e rebocadas de tinta. Orgulhoso, o amigo Heráclito o exibia como um troféu. E eu, apressadamente, num átimo, o batizei de “O Encolhedor de Cabeças”, título que remetia ao meu recente interesse. A obra era, no meu entender afoito, de vanguarda, num procedimento muito próximo ao de Farnese de Andrade. Mais tarde, o associei às cabeças de chimpanzé de Júlio Lerner. E, indo mais longe, enquanto Artur Bispo do Rosário bordava a capa para a ascensão aos céus, também místico, Tube se travestia, no carnaval, de Caboclo Samambaia. Será que Tube sabia de tudo isso? Certamente não. Assim como Bispo do Rosário, ele era tão somente um homem do povo que sentia necessidade de se expressar através da arte autêntica, bruta, sem teorias, arte pela arte, ponte com a divindade.
por isso, enquanto houver um tango triste
um otário, um cabaré, uma guitarra
tu viverás também,
Carlos Gardel
Ao me mudar de volta para a pequena cidade, tive a oportunidade de ver, no Mercado Municipal, uma exposição de telas primitivistas de Tube, com barcos, trens, árvores, casinhas, muito distantes de “O Encolhedor de Cabeças”, nas quais o artista estava inteiro, íntegro, consciente de que a ingenuidade dos seus quadros é o que atraía os compradores. E por que não fazer o jogo do mercado? Estarei delirando, vendo tomada em focinho de porco? O que sei é que Tube era sábio o suficiente para pintar o que lhe pediam, desde que rendesse um troco, é claro. Na ocasião, alguém me contou que ele, já idoso, estava morando numa ilha próxima, recluso, aparecendo raras vezes para divertir os amigos. Muitas vezes pensei em ir vê-lo, mas acabei me mudando sem ter feito a visita.
Em tempo, o tango que perpassa este texto é uma composição de Herivelto Martins e David Nasser, gravado para sempre em minha memória na voz de Jobel Soares de Freitas, o nome de batismo de Tube, um dos heróis da minha vida, bem mais duradouro que Brian Jones.
sábado, 31 de julho de 2010
AS PRISÕES
por Edson Negromonte
Alfred Hitchcock, o mestre do suspense, era traumatizado com as grades, explorando isso em seus filmes; o pai o mandara ainda menino, de pijama, à delegacia, com um bilhete, solicitando ao delegado que prendesse a criança. Tornou-se essa a mais longa e interminável noite do futuro cineasta. Também me sinto apreensivo todas as vezes em que sou obrigado a passar em frente a uma delegacia. Descer do metrô na Estação Carandiru, quando ali perto se encontrava ainda em plena efervescência o presídio, era para mim motivo de muita apreensão. Eu olhava para os lados, evitando os policiais fardados que, por desventura, encontrasse pelo caminho. Para a minha consciência culpada, apesar de há muito não fazer nada de errado, os homens da lei podiam plantar, ao bel-prazer, uma prova qualquer em nossos bolsos, como a bagana de um baseado que eles mesmos fumaram, certo de que mesmo um trêmulo sim pode soar aos seus treinados ouvidos musicais como um evidente desacato. Qualquer um que, à minha frente, surge fardado é motivo de desconfiança e, é claro, imediata preocupação, podendo a qualquer momento e sob qualquer alegação me deter. Sempre tive certeza disso: sou culpado até que se prove o contrário. E provar a inocência implica um processo tão moroso que não vale a pena porque eu já estaria morto quando se desse o veredicto. Assim, indistintamente, eu suspeito tanto de soldados quanto de cobradores de ônibus, com seus denunciadores uniformes. Sei que, com a idade, estou melhorando; os guardinhas mirins já não me metem tanto medo. Inclusive, com o passar dos anos e a sapiência da idade, aprendi também a detectar o policial civil, essa gente que surge disfarçada de cidadão comum: todos eles escondem os miúdos e acinzentados olhos de rato por detrás das lentes verdes dos indefectíveis óculos ray-ban.
A primeira vez em que fui preso, eu não tinha mais de quinze anos. Numa noite de sábado, fui convidado pelos zome a atravessar a rua, para uma palestra amigável com o representante da lei, o famigerado Ganso.
– O delegado quer falar com você... – segredaram-me dois meganhas.
– Ele quer falar comigo, por bem ou por mal?
– O delegado quer falar com você! – instaram.
– Ele quer falar por bem ou por mal? Porque estamos num país democrático, e se for por mal...
Incentivado pelo riso dos circunstantes, tentei dar continuidade ao meu improvisado discurso libertário, quando fui abruptamente interrompido pela súbita visão de dois ameaçadores e negros cassetetes de borracha. Que democracia era aquela à qual eu me referia? Agarrado pelos braços, fui diplomaticamente levado ao encontro do tal delegado, que se encontrava postado na esquina em frente, à minha espera, com as mãos às costas e a barriga inflada. Agarravam-se os dois praças tão denodadamente às carnes dos meus braços, sob a jaqueta Lee, erguendo-me do chão, que, movido pela dor, com um repuxão do braço direito,tentei me libertar daquelas tenazes. Então, no meio da rua, o soldado Belfare desferiu uma violenta cacetada em meu braço esquerdo. Mais calmo, ou melhor, acalmado, topei com os olhos fuzilantes do delegado, justamente quando o Cine Ópera abria as portas e despejava a multidão que estivera assistindo à última sessão. Curiosas, as pessoas foram se aglomerando para ver o improvisado espetáculo de um adolescente acuado pelas forças que supostamente deviam manter a ordem. Instintivamente, aproveitei para repetir, em alto e bom som, para que todos ouvissem, como oportunas testemunhas para uma espécie de salvo-conduto:
– Você quer falar comigo por bem ou por mal?
Evidente que não obtive resposta, mas assim fazendo evitei outra cacetada.
– Para a cadeia! – ordenou o barrigudo Ganso.
Ladeado pelos dois soldados, delegado à frente, seguimos o chefe pela Rua Dr. Carlos Gomes da Costa, dobrando à esquerda, na esquina da Igreja de São Benedito, entrando na Vicente Machado, para chegarmos finalmente à casa de detenção. No trajeto, retomei, agora aos gritos, o interrompido discurso, acrescentando um bordão desafiador, porque verdadeiro, mas ao mesmo tempo suicida, incentivado pelos aplausos da multidão que nos seguia e pelas janelas que se abriam à nossa passagem. Por uma questão de segurança, eu precisava tornar ainda mais pública a minha indevida prisão:
– Vocês são mesmo muito valentes! Só prendem bêbado, menor e mulher de zona!
Palmas.
Gritos e apupos.
Não há melhor combustível para o motor juvenil que o reconhecimento dos amigos, em primeiro lugar, depois os conhecidos e, por último, os curiosos. Agora, excitado, eu berrava:
– Vocês são mesmo muito valentes! Só prendem bêbado, menor e mulher de zona!
Mais palmas. Como dizia o Chacrinha: uma salva de palmas pra ele, que ele merece! Abriam-se janelas, olhos sonolentos e vermelhos espreitavam do escuro dos lares, tentando entender o que acontecia na noite sempre pacata e modorrenta da pequena cidade. A plateia, aumentando sensivelmente, obrigava-me a melhorar o discurso, tornando-o ainda mais contundente:
– Os valentões... só prendem menor, torrado e... puta!
Aí, então, o cortejo, que já tinha virado uma procissão de pândegos, sem andor, acompanhando um santo do pau oco, em coro, endossava:
– É isso aí, só de menor, torrado e puta!
Na delegacia, fui conduzido por um corredor escuro e fétido, onde minha imaginação fértil descobria, nas paredes, manchas de tortura, sangue e fezes. Após um tempo que me pareceu interminável, veio um soldado pedindo que eu fizesse o favor de acompanhá-lo. Nossa, quanta gentileza! Ao entrar na sala do delegado, lá encontrei meu pai. Tirado da cama, com cara de enfezado, sob o pijama ele deixava transparecer propositadamente a intimidadora coronha de um 38. O delegado, evitando me olhar, alegava que eu fora detido porque estava fazendo arruaça em frente ao cinema, após as dez horas da noite. Irritado, sem medir o tamanho da imprudência, dei de dedo na cara do homem, chamando-o de mentiroso. Meu pai pediu que me retirassem da sala. Sentei-me então solitário numa cadeira de fórmica vermelha, na saleta de espera.
Liberado, na porta da delegacia, fui ovacionado por tamanha multidão que se afigurava estar ali concentrada toda a população de Antonina, aglomerada na calçada do lado oposto, nas janelas, nos muros, à espera da minha saída triunfal. Tornei-me assunto das conversas da semana, nos bares, nos lares, na missa, quermesse, barbearias, praças e, gloriosamente, no Mercado Municipal, onde se dizia, à boca pequena, que o delegado era veado e tinha se dado mal na escolha do parceiro da noite. Pouco tempo depois, ele foi transferido para o norte do Paraná, onde morreu assassinado.
A segunda vez em que fui parar numa delegacia ocorreu em Curitiba, durante a comemoração do aniversário de um amigo, num restaurante de Santa Felicidade. Voltávamos em seis para a nossa república, no Edifício São Paulo, sob uma garoa fininha, e evidentemente mais alegres que de costume, devido à excessiva ingestão do dionisíaco vinho que acompanhava os deliciosos pedaços de frango e polenta frita. Exatamente na Rua Cruz Machado, abraçados, eu e Zé Gordo subimos no para-choque traseiro de um velho DKW estacionado. Surgida sabe-se lá de onde, uma veraneio amarela, com placa de Santos, encostou ao nosso lado. Saíram do veículo dois sujeitos truculentos, pedindo-nos documentos. Então, Xixo, lutador de ai-ki-dô e namorado de minha irmã, retrucou:
– Mostre os seus primeiro!
Um dos brucutus exibiu a característica carteira preta, de couro, com distintivo cromado, em tudo idêntica às anunciadas pelo curso por correspondência de detetive particular do Instituto Monitor. Aproveitando-se da distração de Xixo, que, sob a luz difusa do poste, tentava entender o que era aquilo à sua frente, o galalau virou-lhe uma violenta bofetada na cara. Percebendo que estávamos em maus lençóis, fomos rápidos e educadamente esticando as nossas identidades, mas os homens não queriam mais conversa. Estávamos detidos por desacato à autoridade. Fomos amontoados, como sacos de batata, no bagageiro do insuspeitado camburão. No trajeto, os policiais ainda abordaram dois rapazes em atitude suspeita, sob a marquise de uma loja: estavam fumando um baseadinho. Agora, estávamos em oito no bagageiro da Veraneio! Não parece, mas como cabe gente nesses carros da polícia. Ao chegar à Delegacia de Entorpecentes, fomos conduzidos a uma sala ampla, onde havia somente uma pequena mesa de madeira e um beliche, corroído pelos cupins, no qual encontrava-se algemado um batedor de carteiras.
– Todo mundo pelado! – ordenou o policial.
Para o homem civilizado é vergonhoso ficar nu na frente dos outros, ainda mais quando não se conhece a criatura. Mas ficar nu nas noites frias e chuvosas do inverno curitibano vai além da simples humilhação. Vimo-nos, então, como oito grotescos macacos pelados, de minúsculos pintos, tiritando de frio. Ajoelhados, obedecíamos a um círculo imaginário, desenhado no chão úmido, de cimento, pelo dedo indicador do mata-cachorro. Assim permanecemos durante um bom tempo, de braços cruzados, sem podermos sequer descansar sobre os calcanhares, sob os olhares irônicos, tanto dos policiais quanto do larápio, vestido. A porta abriu-se de sopetão, e um dos rapazes foi chamado. Foi-se, pelado, aterrorizado e constrangido. Ficamos olhando para o seu amigo, choroso, quando ouvimos um grito lancinante, vindo das catacumbas, onde homens morriam como porcos, assassinados pela ponta de uma baioneta no coração. Sim, aquela delegacia tinha muitos porões, onde presos mofavam, depois da ração diária de choques elétricos nos testículos. Logo em seguida, o outro rapaz foi também levado. Entreolhamo-nos, os corpos não queriam parar quietos, tremiam apesar do esforço em mantê-los quietos, dignos. Por causa disso, tremiam mais ainda. Já não éramos capazes de olhar uns para os outros. Rezávamos em silêncio.
Então, o nosso grupo começou a ser chamado, de um em um. Cambaio foi o primeiro. Não voltou. Seguiu-o Zé Gordo. Depois, Vostok, Xixo e Carlito. Nenhum deles voltou! Eu fiquei por último. Posso assegurar, sem sombra de exagero, que eu estava realmente apavorado, imaginando as piores atrocidades.
Numa chave de braço, fui conduzido à mesa do delegado, uma escrivaninha de tampo mais baixo que o normal, encimada por uma lâmpada de luz mortiça.
– De mãos abertas em cima da mesa! – gritou o policial. – Mais perto do delegado!
– Quantos você fumou hoje? – perguntou o chefe de polícia, melífero.
Não tive tempo de responder; uma ripada na bunda jogou-me esparramado por cima da mesa, dando uma cabeçada no peito do delegado. Recompus-me ligeiro; ao mesmo tempo, as minhas roupas eram arremessadas na minha cara.
– Se veste e desaparece, vagabundo!
Não precisou pedir duas vezes. Entre contente e dolorido, vesti-me mais rápido que o Flash e, desorientado, saí em busca da porta da rua, quando ouvi chamarem.
– Ei, aqui!
Eram meus companheiros de farra que, do lado de fora, acenavam pressurosos. Ao chegar à rua, nunca me senti tão bem ao levar na cara a golfada de ar gelado que só o bendito inverno curitibano é capaz de proporcionar àqueles que emergem do inferno da incerteza.
Em vez de irmos para casa, resolvemos terminar a noite no Guarda-Chuva, o bar onde o grande músico Pelicano Preto estava se apresentando. Ao chegarmos, ele cantava o seu conhecido hit "Nega, Neguinha". Sentamo-nos à mesa do camarada Bozó, já preocupado com a nossa demora; ele saíra um pouco antes do restaurante, de táxi, combinando nos esperar no bar. Ao ver-nos, os seis, incomodamente sentados de lado, para evitar a dor provocada pela ripada, perguntou intrigado o que acontecera. Suas gargalhadas inundaram o ambiente do Guarda-Chuva. O que sei é que, para evitar a dor (parecia que tínhamos quebrado a bacia), fomos obrigados a dormir de barriga para baixo durante uma semana, enquanto gargalhando Bozó fazia questão de contar a nossa desventura a todos que nos visitavam.
A última vez foi em Campinas, interior de São Paulo. Voltando da faculdade, quase meia-noite, resolvi comer um cachorro-quente e tomar uma Coca-Cola na carrocinha da esquina, a uma quadra de casa. Satisfeito, de barriga cheia, fui abordado por três camburões. Os bichos desceram enfurecidos, já gritando:
– Documento!
Prontamente, estendi a carteira de identidade, porque gato escaldado tem medo até de água benta. Ainda mais quando se está sozinho, numa cidade onde não se conhece ninguém.
– Documento de gente honesta é carteira de trabalho! – berrou o gafonha.
– Eu é que não vou andar com aquele calhamaço no bolso! – respondi, sem refletir e sem obviamente ainda ter aprendido definitivamente a lição: com os homens da lei não se deve retrucar, eles são os representantes de Deus na terra, fazendo e desfazendo das nossas míseras vidas quando bem entendem.
– Leva! – gritou o motorista de uma das viaturas.
– Não, por favor, eu tenho que trabalhar amanhã. Como é que eu vou explicar no banco que fui preso? Por favor!
– Some daqui, filho da puta!
Obedeci prontamente, sem ao menos olhar para trás, com medo de virar estátua de sal. Olha, hoje, pensando melhor, os caras podiam me xingar de tudo naquela hora, mas botar a honra da minha santa mãezinha em questão foi muita falta de consideração.
quarta-feira, 14 de julho de 2010
O AMIGO MAIS VELHO
por Edson Negromonte
A minha conscientização política aconteceu de variadas maneiras, seja através de panfletos, surgidos sabe-se lá de onde, seja ouvindo as conversas veladas dos adultos ou através da leitura de alguns livros ainda permitidos, como "A República", de Platão, e "A Cidadela", de Tomaso Campanella, em edições surradas, mas principalmente através do amigo Wagner que, um dia, me emprestou sem como nem porquê, mas cheio de recomendações, o diário de guerrilha de Che Guevara. Talvez visse no amigo mais novo alguém digno de confiança. De uma geração anterior à minha, muito antes da minha chegada a Antonina, ele já se mudara para Santos; por aqui aportando somente nas férias. Antes do total obscurantismo, imposto pela censura dos generais, ele colecionara religiosamente as páginas do líder guerrilheiro, publicadas no jornal O Globo, colando-as cuidadosamente nas folhas de um prosaico caderno de desenho. Era um dos seus tesouros. Agora, isso dava prisão, tortura e até morte, que podiam se estender a outros membros da família. Então, todo cuidado era pouco. Portanto, isso era coisa que não se comentava com qualquer um. Para que se ficasse sabendo desses tesouros enterrados nos porões das casas, era preciso primeiro adquirir a confiança do outro. Eis que, uma dada noite, recebi o diário do Che das mãos de Wagner, como se recebesse um carregamento de droga, num tráfico de conhecimento, mocozeado numa encardida mochila de lona. Despedi-me dele e fui para casa, trêmulo, apreensivo, à espreita; a qualquer instante vultos saltariam da escuridão e me arrebatariam o volume. Consegui chegar incólume ao meu quarto, o qual ficava do lado de fora da casa. Com o abajur aceso até altas horas da madrugada, deliciei-me com os recortes, lendo-os gulosamente, deixando escapar palavras, adivinhando sentidos, mas comungando com a tão sonhada liberdade da América Latina, quase toda controlada por militares e pelo poderio econômico dos Estados Unidos. Com a chegada das primeiras luzes da manhã e do sono insistente, escondi o caderno sob o colchão, pois nem meus pais deviam saber o que eu andava lendo. Podia ser perigoso para eles; eu não queria ver minha mãe pendurada no pau de arara, levando choques na genitália. Ou as unhas de meu cachorro Toddy sendo arrancadas a frio, para que o coitado, sob coação, confessasse que o meu quarto era um aparelho. Hoje, isso pode parecer paranoia, mas contava-se nos bares sobre um bebê ameaçado pelos torturadores, os quais lhe faziam perguntas sobre atividades comunistas. A mãe, presente na sala, a tudo assistia, aos prantos, enquanto os policiais interrogavam o pequeno. Evidente que a mãe é que respondia pela criança, mas os policiais nem sequer olhavam para ela, ignorando-a, fazendo de conta que as respostas desesperadas e convenientes vinham da boca do bebê, que aterrorizado só sabia chorar. Então, estava decidido: no dia seguinte, eu iria também dar a vida pela causa, pela libertação do país, pegar em armas, combater o poder dominante. Depois da limpeza doméstica, como o Che, combateria em outras terras e não descansaria enquanto houvesse um foco de totalitarismo no planeta. Sim, eu iria embora, sem avisar pai nem mãe. Não podendo expor meus entes queridos ao perigo, adotaria outro nome, um codinome. Adormeci, cheio de convicções revolucionárias.
Por volta do meio-dia, radiante o sol atravessava a vidraça do quarto, sem cortinas. Agora, pensando melhor, como eu faria para participar da luta armada? A quem me dirigir? Era melhor deixar a partida para a noite. Ou, quem sabe, para o dia seguinte. É isso mesmo, precisava antes fazer os contatos, não podia sair assim sem mais nem menos. Precisava contar os meus planos para o amigo mais velho. Somente para ele. Quem sabe, e se ele me acompanhasse na luta pela libertação dos oprimidos? Andei pela cidade e não o encontrei. Talvez estivesse em reuniões importantes, engendrando novos planos para a tomada do poder. Encontrei outros amigos, da minha idade, a conversar despreocupadamente sobre futebol, as meninas, o mar, o tempo... Com eles fiquei; sim, a revolução podia esperar.
Na tarde do dia seguinte, finalmente encontrei o amigo mais velho. Entusiasmado, contei-lhe meus planos. Desconversou, perguntando-me se eu já ouvira com atenção os sambistas da velha guarda. Sentados na escadaria em frente à casa do avô, falou-me de gente como Zé Kéti, Cartola e Nelson Cavaquinho, enaltecendo as letras, de aparente simplicidade, mas, ao mesmo tempo, de insuspeitada herança parnasiana. As letras de música eram, para ele, de grande interesse, relacionando Caetano Veloso com Fernando Pessoa, principalmente no fado "Os Argonautas", alertando-me, em voz baixa, sobre um trecho da letra de "Soy Loco por Ti, América", quando o compositor diz el nombre del hombre muerto, ya no se puede decirlo. Surpreendentemente, revelou-me que isso era uma alusão ao Che. Eu, por minha vez, mais jovem, retribuía as lições de música popular brasileira com informações sobre rock, a minha paixão, contando-lhe sobre bandas como Blood, Sweat & Tears, Sugarloaf e Argent, entre tantas outras. (Alguns anos mais tarde, assombrou-me a sua paixão por Pink Floyd. Ele comprara dois exemplares de "The Dark Side of the Moon". Um para ouvir até gastar e o outro para guardar no fundo do baú, como se guarda uma relíquia, acrescentando que era coisa digna de se mostrar aos filhos, os quais ele ainda não tinha. Contei-lhe, então, indignado que o crítico Tárik de Souza escrevera na revista "Rock – História e Glória" que, neste LP, a banda tinha se transformado no Ray Conniff do rock. Plácida e sabiamente, retrucou: – E que problema há em ser o Ray Conniff do rock?)
A nossa agradável conversa sobre música foi interrompida por um bêbado, cantarolando:
Com a marvada pinga que eu me atrapaio
Eu entro na venda, já dou meu taio...
Era a famosa "Moda da Pinga", o imorredouro sucesso de Inezita Barroso ecoando no morno final de tarde antoninense. Despedimo-nos em meio a risos; era hora de jantar.
À noite, saboreando uma Choco-milk, eu assistia ao Fantástico, encostado no balcão da lanchonete do Oswaldo quando, num dos quadros musicais do programa televisivo, surge um jovem tocando uma craviola, instrumento de belíssima sonoridade, mas de difícil execução, inventado por Paulinho Nogueira. Extasiado com a técnica de Stênio Mendes (este era o nome do virtuose), ouvi uma voz conhecida ao meu lado.
– Esse cara é demais!
Era Wagner, também encantado com a execução de "Algazarra dos Monges". Ao final do quadro, tecemos comentários sobre os grandes músicos do país, esquecidos, marginalizados, sem acesso aos meios de comunicação. E continuamos conversando sobre música, muita música, todo o tipo de música, trocando ideias, muitas ideias, e voltando à nossa mais recente descoberta, Stênio Mendes, o qual ainda não tinha nenhum disco lançado; falamos também sobre o disco ao vivo de Alceu Valença, com "Papagaio do Futuro", música que o amigo considerava um primor, sobre a guitarra infernal de Lanny Gordin, no disco da Gal; o tão comentado e jamais ouvido "Não Fale com Paredes", do Módulo Mil, sobre A Bolha, o Terço, Novos Baianos, as letras estranhas e cheias de toques de Galvão, a voz de Baby Consuelo, que Wagner dizia remeter à Ademilde Fonseca (de quem eu nunca ouvira falar), sobre Wally Sailormoon, que lançara o livro "Me Segura que Eu Vou Dar um Troço", sobre bolero (outra coisa que eu detestava, mas que o professor fez questão de mostrar a beleza do ritmo na voz de Roberto Luna. Puxa, outro desconhecido!), sobre Drummond, o "Orlando", de Virginia Woolf, João Cabral, Silvia Plath, a poesia engajada de Ernesto Cardenal, Neruda, Cesar Vallejo, Mao Tsé Tung, a capa de "Some Time in New York Ciry", a nudez de John e Yoko, os contos de Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Mario Vargas Llosa, enfim, a emergente literatura latino-americana, a entrevista de Sidney Magal para o Folhetim, a cigana Sandra Rosa Madalena, sobre o carnaval que se aproximava, Nenê Chaminé, o carnavalesco que abria a festa carregando um urinol cheio de cerveja, onde boiava uma prosaica linguiça, sobre o Bloco das Escandalosas, com insuspeitos chefes de família travestidos com as roupas das esposas...
Porque a ocasião exigia, pedimos então mais uma rodada dos deliciosos sonhos do Oswaldo, recheados de creme.
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sexta-feira, 9 de julho de 2010
O GRANDE EVENTO
por Edson Negromonte
Naquela manhã chuvosa de 24 de abril de 1933, a segunda-feira prometia ser como sempre são os inícios de semana nas cidadezinhas do interior. Apesar do intenso movimento portuário, a modorra era quebrada somente pelos apitos estridentes dos navios e as ocasionais badaladas do sino da Matriz. Mas os mais velhos, aqueles que beiram hoje os oitenta ou noventa anos, ainda lembram com entusiasmo da chegada do Almirante Jaceguay, uma embarcação mista, pertencente ao Lloyd Brasileiro, com destino à Argentina. Esse navio, construído em 1912, era um dos mais suntuosos da companhia, com capacidade para 270 passageiros, fazendo a rota de Manaus a Buenos Aires. Não que fosse novidade embarcações desse porte em nosso porto, mas a lista de passageiros era das mais seletas, contando com nomes que se pronunciados a qualquer momento, seja nos lares, seja nos bares, suscitavam suspiros apaixonados e a conversa derivava inevitavelmente para a vida romanesca dessas personalidades, evocando seus últimos namoros, os penteados, o corte dos ternos, os mais recentes sucessos. Eram artistas do teatro e do rádio, gente que víamos somente em revistas de fofoca, jornais e alguns filmes. Gente de um lugar longínquo, o Rio de Janeiro, tão distante da nossa realidade comezinha.
Apesar da garoa, quem, desavisado, pelo porto passasse pensaria que toda a população antoninense estava ali presente. Doce ilusão! Em 1933, segundo o recente recenseamento, a cidade já contava orgulhosamente com treze mil habitantes. Os meninos, alvoroçados, seguidos dos mais velhos, vinham curiosos para ver de perto aquela gente glamorosa, brilhante, feita especialmente das ondas sublimes do rádio, gente que vivia e atuava na então capital federal, um lugar inatingível a meros mortais. Eram os artistas do Teatro Alhambra, a nata da arte popular de todos os tempos, para pasmo de alguns céticos que, nas gares do Mercado Municipal, encorajados por uns goles a mais de aguardente, afirmavam que esses seres tão sublimes, quase diáfanos, dos quais conhecía-se sobretudo as vozes, não existiam de verdade, e, diziam mais, que as fisionomias, entrevistas em revistas, eram, sim, o fruto de uma imaginação fértil, semeada e adubada por espertinhos, gente entendida em criar necessidades na mente simples de um povo ingênuo.
A bem da verdade, o porto estava mesmo apinhado de gente, a plateia de um grande auditório a céu aberto. Eram eles, sim, eram eles! Os grandes artistas do famoso Alhambra, em carne e osso! E voz! E, da amurada do navio, dando com a mão para o público! Isso, por si só, já era um grande espetáculo, digno de se guardar na memória. Como o Jaceguay estava fadado a permanecer em nossas águas até as onze horas da noite, a fim de proceder ao carregamento de gêneros alimentícios, os ilustres passageiros desceram à terra firme para conhecer e desfrutar da agradável cidadezinha colonial. Nessa ocasião, enquanto exploravam o comércio local, os artistas foram abordados por Álvaro Paciência, o provedor do Hospital de Caridade, entidade mantida pela população, além de se valer também de concertos beneficentes para angariar fundos e dar continuidade, assim, à obra benemérita de amparar os desvalidos. Então, o bondoso Paciência, nascido Álvaro Rodrigues da Costa, conseguiu que a trupe se apresentasse de graça no Theatro Municipal, cuja renda reverteria única e exclusivamente para as obras caridosas do hospital. Em seguida, o maestro Urquiza e a Lyra Antoninense, banda local formada por crianças e adolescentes, foram acionados para recepcionar condignamente o público, à porta da casa de espetáculos, com marchinhas e foxtrotes. Até hoje, esse teatro é um dos orgulhos da população, principalmente após a restauração nos anos 80, que lhe devolveu a antiga imponência. Apesar de constar da fachada a data de 1906, pode-se recuar mais alguns anos no tempo e atribuir-lhe, como data de edificação, o ano de 1875, pois o prédio atual é remanescente de um teatro mais antigo, fundado pela Sociedade Teatral Aurora Antoninense.
Os moradores precisavam desse refrigério para aliviar os espíritos, pois no mês de fevereiro tinham sido barbaramente surpreendidos com aquilo que a imprensa local chamou de "O Crime do Mercado", quando o jovem comerciante Christiano Hacker desferira, em legítima defesa, uma facada fatal no coração de Cyrillo Pin, um marinheiro arruaceiro que tentava esbofeteá-lo pela segunda vez. Ou, no mês seguinte, do tiroteio descabido nas ruas centrais da cidade, pondo em risco a segurança dos transeuntes, quando o soldado Joaquim perseguia esbaforido o facínora José Ferreira, oriundo de Santa Catarina e morador no bairro do Itapema. Não bastassem tantas ocorrências escabrosas em tão pouco tempo, os cidadãos viviam também sob a ameaça de um terror maior, pois o Almanaque de Antonina, na edição de 1933, na página 9, trazia as profecias de Cagliostro II, um afamado e confiável ocultista da capital. Assegurava ele que a soma dos números deste ano davam origem ao arcano responsável principalmente pela destruição do porvir e que, no fim do ano, um vulcão entraria em erupção, trazendo moléstias piores que a devastadora gripe espanhola. Temia-se por tudo isso, mas principalmente pelo vulcão, embora não se tivesse conhecimento de nenhuma dessas montanhas irritadiças no município. Por isso, no domingo imediatamente anterior a essa segunda-feira, a gente da cidade acorrera em massa para prestigiar o magnífico elenco do Grande Circo Show, o qual contava com uma maravilhosa coleção de feras amestradas, da qual se sobressaía o temível leão Prince, imponente animal dourado vindo diretamente das brenhas africanas e que, até aquela data, já devorara pelo menos três domadores. Assim, na segunda-feira, enquanto os meninos sonhavam, de olhos abertos, com o que podia haver entre as coxas da trapezista, a elite antoninense pode apreciar os grandes nomes da época. Apresentaram-se, então, no Theatro Municipal, Jayme Costa, Ítala Ferreira e Procópio Ferreira, os expoentes nacionais das artes cênicas, recitando e fazendo pequenos esquetes teatrais, mais os principais nomes da era de ouro do rádio brasileiro. Perto de completar 25 anos, Sílvio Caldas deleitou o público com "Faceira", seu grande sucesso de três anos atrás, Mesquitinha, que mais tarde se tornaria diretor de cinema, cantou a impagável "Não Tenho um Tostão no Bolso" e Luís Barbosa, usando o chapéu palheta como instrumento musical, também arrancou risos com "A Mulher é Veneno", enquanto o jovem Almirante emendava com "Na Gruta do Feiticeiro". Com incompletos dezoito anos, ainda inédita em disco, Aracy de Almeida brindou a plateia com sua linda voz, a qual só seria conhecida do grande público no ano seguinte, com a gravação da marchinha de carnaval "Em Plena Folia". Aplausos. Quando parecia que nada mais superaria a apresentação das irmãs Linda e Dircinha Batista, com apenas 14 e 11 anos, respectivamente, cantando juntas "A Órfã", eis que surge em cena Aurora Miranda, no frescor dos 18 anos, cantando a ainda inédita "Cai, Cai, Balão", a canção junina que viria a ser o seu disco de estreia, no qual ela faz par com Francisco Alves, o eterno Rei da Voz. Mais aplausos. Para delírio de todos, sai de trás das cortinas, apoteótica, cantando "Pra Você Gostar de Mim (Taí)", a esfuziante Carmen Miranda. Sim, ela, a então Ditadora Risonha do Samba, dois anos antes de se tornar conhecida como a Pequena Notável e seis antes de embarcar para os Estados Unidos e lá alcançar a fama internacional, como the brazilian bombshell. Palmas, assovios, ovação geral. Então, a plateia pediu, entre gritos, que ela cantasse "Moleque Indigesto", a composição de Lamartine Babo que fora um dos sucessos do carnaval daquele ano. Aproveitando o ensejo, o conterrâneo Izidoro Costa Pinto subiu ao palco e pediu a palavra, para agradecer em nome de toda a população a excelente apresentação daquela gente de sonho. De um único pulo, comicamente, um irrequieto pianista passa por cima do instrumento e cai direto no centro do palco, retribuindo as lisonjeiras e eloquentes palavras do grande orador antoninense. O tal pianista era, ninguém mais, ninguém menos, que o maestro Ary Barroso, o compositor de "Aquarela do Brasil", entre tantas outras joias do nosso imortal cancioneiro popular.
Apesar da constelação reunida no pequeno palco, também brilhavam na plateia as estrelas locais, como Joubert; um jovem declamador, cantor e ator, que se destacava nos grêmios recreativos da cidade, principalmente no Lyrial, do Clube dos Operários, em dupla com Peixotinho. Alguns olhares apaixonados recaíam sobre a poetisa Mary Camargo. Mas o que chamava mesmo a atenção era a beleza estonteante de Stellinha Egg, recém-saída da adolescência, professora do Grupo Escolar Ermelindo Matarazzo, de voz maviosa e presença constante nos concorridos saraus da cidade. Além de cantora, Stellinha causara furor entre a juventude quando, dois meses antes, encabeçou um abaixo-assinado para a libertação do ativista político Obdulio Barthe, encarcerado no Paraguai. Talvez movida pelo inesquecível espetáculo proporcionado pela trupe do Alhambra, a professorinha tenha decidido se dedicar profissionalmente à carreira artística, deixando assim a pequena cidade para gravar, em 1944, o seu primeiro 78rpm, com a romântica "Uma Lua no Céu, Outra Lua no Mar", do lado A, e, no outro lado, a brejeira "Tapioquinha de Coco".
quinta-feira, 24 de junho de 2010
A BOLA DE CRISTAL
por Edson Negromonte
Entrar era transpor umbrais secretos, há muito esquecidos dentro de si mesma. Talvez umbrais seja a palavra mais apropriada, com tudo o que ela carrega de mistérios iniciáticos. Assim mesmo, no plural, pois o primeiro umbral já traz dentro de si os umbrais seguintes, o segundo, o terceiro, o décimo segundo, quiçá o décimo terceiro, o qual atinge-se somente psiquicamente, a primeira ponta do quinto triângulo. A casa cheirava ao mofo que as casas fechadas insistem em exalar depois de abertas, protegem-se assim as velhas moradas dos olhos do vulgo; ao iniciado, como prêmio, os tesouros arcanos da pirâmide interior. Tateante, Berenice atravessou o longo corredor estreito, o assoalho de madeira rangendo a cada passo, a máscara da escuridão vendando-lhe os olhos. Na ampla câmara, ainda às cegas, intuitivamente sabia em que gaveta repousavam as velas. A caixa de fósforos, sobre a grande távola, à direita. À luz bruxuleante da vela, ela olhou ao redor e tudo estava no devido lugar: o avental, os castiçais, a toalha, bordada em ponto-cruz, o calendário do Sagrado Coração de Jesus, assinalado em 25 de março, o prato por lavar da última refeição da avó. Nas paredes, sombras dançavam como num teatro de silhuetas. De repente, Berenice percebeu um leve perfume de alfazema: ela, ainda menina, saindo do banho matinal. Dirigiu-se então à sala de estar, relanceando os pequenos olhos negros pelos móveis há tanto tempo intocados. Sobre o altar da cristaleira, os parentes emoldurados a observavam; tio Altamiro sempre sorridente. Não o conhecera, mas ele sempre tivera para ela um sorriso condescendente. Contavam-se as mais intrigantes histórias sobre ele, de como lutara na Guerra do Contestado, da noiva perdida num lance de dados, da tentativa de suicídio, “um tiro de garrucha no peito”, dos versos publicados no Correio do Norte, a boêmia, o encontro com o Cisne Negro: “um poeta de verdade, mas hedonista que nem ele”, a indefectível tuberculose, o sanatório, a morte prosaica aos 29 anos, após ser mordido por um cão raivoso. Apesar da vida aventureira, ele, o hieracocéfalo, também ficara estagnado, o sorriso beatífico sobre a cristaleira, como todos os outros nigromantes da família. Carinhosamente, Berenice limpou na saia cinza de lã a poeira do retrato, apertou-o contra a blusa, de encontro aos seios o vidro frio, quando seus olhos escorregaram para a pequena bola de cristal sobre a mesinha de canto, ao lado da namoradeira. Por quantas vezes a avó a balançara para que a menina se divertisse com a neve, os minúsculos flocos brancos descendo sobre o telhado vermelho? Para ela, tio Altamiro sempre morara dentro da bola, só os poetas mereciam viver assim, numa casa de neve eterna, a escrever versos nostálgicos sobre o sol das terras distantes, às quais ele jamais iria. Em que escaninho da casa tio Altamiro guardara as cartas de navegação?
Entrar era transpor umbrais secretos, há muito esquecidos dentro de si mesma. Talvez umbrais seja a palavra mais apropriada, com tudo o que ela carrega de mistérios iniciáticos. Assim mesmo, no plural, pois o primeiro umbral já traz dentro de si os umbrais seguintes, o segundo, o terceiro, o décimo segundo, quiçá o décimo terceiro, o qual atinge-se somente psiquicamente, a primeira ponta do quinto triângulo. A casa cheirava ao mofo que as casas fechadas insistem em exalar depois de abertas, protegem-se assim as velhas moradas dos olhos do vulgo; ao iniciado, como prêmio, os tesouros arcanos da pirâmide interior. Tateante, Berenice atravessou o longo corredor estreito, o assoalho de madeira rangendo a cada passo, a máscara da escuridão vendando-lhe os olhos. Na ampla câmara, ainda às cegas, intuitivamente sabia em que gaveta repousavam as velas. A caixa de fósforos, sobre a grande távola, à direita. À luz bruxuleante da vela, ela olhou ao redor e tudo estava no devido lugar: o avental, os castiçais, a toalha, bordada em ponto-cruz, o calendário do Sagrado Coração de Jesus, assinalado em 25 de março, o prato por lavar da última refeição da avó. Nas paredes, sombras dançavam como num teatro de silhuetas. De repente, Berenice percebeu um leve perfume de alfazema: ela, ainda menina, saindo do banho matinal. Dirigiu-se então à sala de estar, relanceando os pequenos olhos negros pelos móveis há tanto tempo intocados. Sobre o altar da cristaleira, os parentes emoldurados a observavam; tio Altamiro sempre sorridente. Não o conhecera, mas ele sempre tivera para ela um sorriso condescendente. Contavam-se as mais intrigantes histórias sobre ele, de como lutara na Guerra do Contestado, da noiva perdida num lance de dados, da tentativa de suicídio, “um tiro de garrucha no peito”, dos versos publicados no Correio do Norte, a boêmia, o encontro com o Cisne Negro: “um poeta de verdade, mas hedonista que nem ele”, a indefectível tuberculose, o sanatório, a morte prosaica aos 29 anos, após ser mordido por um cão raivoso. Apesar da vida aventureira, ele, o hieracocéfalo, também ficara estagnado, o sorriso beatífico sobre a cristaleira, como todos os outros nigromantes da família. Carinhosamente, Berenice limpou na saia cinza de lã a poeira do retrato, apertou-o contra a blusa, de encontro aos seios o vidro frio, quando seus olhos escorregaram para a pequena bola de cristal sobre a mesinha de canto, ao lado da namoradeira. Por quantas vezes a avó a balançara para que a menina se divertisse com a neve, os minúsculos flocos brancos descendo sobre o telhado vermelho? Para ela, tio Altamiro sempre morara dentro da bola, só os poetas mereciam viver assim, numa casa de neve eterna, a escrever versos nostálgicos sobre o sol das terras distantes, às quais ele jamais iria. Em que escaninho da casa tio Altamiro guardara as cartas de navegação?
domingo, 13 de junho de 2010
VAGABUNDOS ORIGINAIS
por Edson Negromonte
Todas as cidades possuem os seus vagabundos, sendo que somente as pequenas os têm como originais, são membros da grande família que vem a ser a população de uma pequena cidade, onde todos os habitantes têm um indefinido grau de parentesco. Em Antonina, na década de 70, havia Barreano, Genésio, Caninana, Dalila Bu e Bardivo (ou Vardivo, como também era conhecido), que, com a simples presença, transformavam uma tarde insípida em mais um dia radiante ou, bem mais tarde, motivo de escritura.
O franzino Barreano, sempre em andrajos, perambulava pelas ruas da cidade, para lá e para cá, sem destino aparente, com o que lhe restava do pé direito sempre envolvido por um pedaço de papelão, amarrado com barbantes encardidos, à guisa de sapato. Ou melhor, o último resquício de uma sandália romana, de causar inveja ao artista plástico e designer Hundertwasser. Se lhe gritavam o nome, Barreano enfiava o dedo na boca, provocando, ao retirá-lo rapidamente, um estampido característico. Nunca se soube de onde ele tinha vindo; sabia-se somente que em Antonina morreria, como certamente ocorreu. Genésio, um pândego de marca maior, era capaz de peidar, sem perder o ritmo, nem a afinação, a primeira frase completa do Hino Nacional. O gran finale do pequeno show era quando um dos meninos mais velhos lhe pedia que mostrasse o ovo. Sem cerimônia, Genésio botava o saco rendido para fora e exibia algo que mais se parecia com um peludo abacate cor de carne, fruto talvez de uma caxumba mal curada. Caninana era uma mulambenta que dormia no coreto da praça, com a qual muitos garotos tiveram sua primeira experiência sexual. Já Dalila era uma desvairada que saía correndo atrás de quem lhe gritasse “Bu!”, com uma saraivada de cabeludos palavrões, desferindo varadas a torto e a direito.
Bardivo é um caso à parte. Todos sabiam que ele era irmão de Albari, o guardião da praça. Encostado nas paredes do velho casario do centro, o simpático Bardivo costumava abordar os passantes:
- Patrão, um dinheirinho para tomar uma pinguinha.
Não havia como recusar uns trocados àquele rosto sorridente e sem dentes. (Como diz a canção dos Titãs: Jesus não tem dentes no país dos banguelas). Herói que se preza, não dispensa um fiel escudeiro; Bardivo tinha Risadinha, cujo sugestivo nome vem de os pequenos dentes apontarem para fora, num eterno sorriso, aparentemente satisfeito com a vida que levava. Os transeuntes que saudavam Bardivo, faziam questão de cumprimentar também o cachorrinho Risadinha.
Albari, além de ser funcionário municipal, com a sua humilde casa de madeira, à beira do trilho, quase defronte à estação ferroviária, era também o tocador de tuba da furiosa, apresentando-se no coreto todos os finais de semana e festividades. Portanto, não se poderia chamá-lo, mesmo carinhosamente, de vagabundo. Mas como, numa brincadeira, uma coisa chama outra, não poderia aqui me furtar de contar as peripécias do irmão de Bardivo: corria a inusitada história de que Albari tinha um pau enorme, descomunal, cuja cabeça lhe chegava ao joelho. A fama de Albari, aliás, do pau do negro Albari ultrapassava já as fronteiras municipais; no banheiro masculino da antiga rodoviária de Curitiba, lia-se, em chamativa tinta vermelha, a inscrição QUANDO FOR A ANTONINA, NÃO DEIXE DE CONHECER O ALBARI. Desavisado, o mijante pensaria se tratar de algum ponto turístico da pequena cidade, algo como um pico. Na verdade, tratava-se de uma pica.
Nas reuniões familiares, quando alguma coisa extraordinária acontecia ou era contada, uma amiga mais afoita invariavelmente exclamava, para gargalhada geral: é o pau do Albari! Tamanha era a fama do nosso ídolo que, numa tarde de domingo, alguns jogadores do Atlético desceram à cidade para um encontro com o Albari, no intuito de pagar uma boa grana para fotografar a avantajada jeba. Entre irritado e lisonjeado (um indisfarçável sorriso dançava-lhe nos lábios carnudos), o homem recusou-se peremptoriamente a exibir a beronga. Os jogadores, irredutíveis, foram dobrando a proposta até serem postos porta a fora. Nós, meros mortais, não conseguíamos entender por que Albari recusara aquela grana toda, digna de uma peladona da Playboy, bufunfa que lhe daria uma vida melhor (naquele tempo, a poupança rendia bons dividendos; ficávamos, na esquina da papelaria do Maurício, na farmácia do seu Carlos, no bar do Homero, calculando os lucros mensais, e juros sobre juros), além da fama nacional, quiçá internacional, planetária até, podendo ir parar no Guiness Book. Certeza absoluta, sempre soubemos disso, a cajarana de Albari era bem maior que a do russo Rasputin, o monge lúbrico. A atitude do semideus local era incompreensível, sendo que ele mesmo alimentava o mito ao movimentar, com a mão no bolso da calça de brim azul, a ponta do birro. Sim, na altura do joelho. Ou, ao sorrir, como se não estivesse nem aí, apertando um pouco os olhos de azeitona, para a ovação da molecada durante o esforço excessivo de soprar a tuba, coisa que, além de inchar as bochechas, movimentava a cabeça do cacete. Sim, na altura do joelho esquerdo. Meninos, eu vi!
Muitos anos depois, em conversa com o Dr. Gaross, o médico mais antigo da cidade, em meio a umas generosas doses de uísque, para minha decepção, já adulto, fiquei sabendo toda a verdade. Como a realidade é cruel, deitando por terra as fantasias mais caras da adolescência. A afamada estrovenga do Albari era do tamanho normal. Depois de tudo, uns despeitados ainda tiveram a ousadia de insinuar que, na verdade, o pinto do Albari era mesmo uma piroquinha de nada. Acontece que o tocador de tuba tinha a bexiga frouxa, a qual ficava vazando constantemente, pingando na cueca e, consequentemente, molhando a calça, tal e qual uma torneira velha que precisasse trocar a bucha. Valia-se ele então de uma mangueira, fechada numa das pontas, presa na cabeça do pênis, esvaziada de hora em hora. Era o artifício encontrado por Albari para levar uma vida normal, depois de vários tratamentos infrutíferos e simpatias mais ainda. Desculpem-me os amigos antoninenses, mas foi-se pelos ares mais uma lenda capelista.
Todas as cidades possuem os seus vagabundos, sendo que somente as pequenas os têm como originais, são membros da grande família que vem a ser a população de uma pequena cidade, onde todos os habitantes têm um indefinido grau de parentesco. Em Antonina, na década de 70, havia Barreano, Genésio, Caninana, Dalila Bu e Bardivo (ou Vardivo, como também era conhecido), que, com a simples presença, transformavam uma tarde insípida em mais um dia radiante ou, bem mais tarde, motivo de escritura.
O franzino Barreano, sempre em andrajos, perambulava pelas ruas da cidade, para lá e para cá, sem destino aparente, com o que lhe restava do pé direito sempre envolvido por um pedaço de papelão, amarrado com barbantes encardidos, à guisa de sapato. Ou melhor, o último resquício de uma sandália romana, de causar inveja ao artista plástico e designer Hundertwasser. Se lhe gritavam o nome, Barreano enfiava o dedo na boca, provocando, ao retirá-lo rapidamente, um estampido característico. Nunca se soube de onde ele tinha vindo; sabia-se somente que em Antonina morreria, como certamente ocorreu. Genésio, um pândego de marca maior, era capaz de peidar, sem perder o ritmo, nem a afinação, a primeira frase completa do Hino Nacional. O gran finale do pequeno show era quando um dos meninos mais velhos lhe pedia que mostrasse o ovo. Sem cerimônia, Genésio botava o saco rendido para fora e exibia algo que mais se parecia com um peludo abacate cor de carne, fruto talvez de uma caxumba mal curada. Caninana era uma mulambenta que dormia no coreto da praça, com a qual muitos garotos tiveram sua primeira experiência sexual. Já Dalila era uma desvairada que saía correndo atrás de quem lhe gritasse “Bu!”, com uma saraivada de cabeludos palavrões, desferindo varadas a torto e a direito.
Bardivo é um caso à parte. Todos sabiam que ele era irmão de Albari, o guardião da praça. Encostado nas paredes do velho casario do centro, o simpático Bardivo costumava abordar os passantes:
- Patrão, um dinheirinho para tomar uma pinguinha.
Não havia como recusar uns trocados àquele rosto sorridente e sem dentes. (Como diz a canção dos Titãs: Jesus não tem dentes no país dos banguelas). Herói que se preza, não dispensa um fiel escudeiro; Bardivo tinha Risadinha, cujo sugestivo nome vem de os pequenos dentes apontarem para fora, num eterno sorriso, aparentemente satisfeito com a vida que levava. Os transeuntes que saudavam Bardivo, faziam questão de cumprimentar também o cachorrinho Risadinha.
Albari, além de ser funcionário municipal, com a sua humilde casa de madeira, à beira do trilho, quase defronte à estação ferroviária, era também o tocador de tuba da furiosa, apresentando-se no coreto todos os finais de semana e festividades. Portanto, não se poderia chamá-lo, mesmo carinhosamente, de vagabundo. Mas como, numa brincadeira, uma coisa chama outra, não poderia aqui me furtar de contar as peripécias do irmão de Bardivo: corria a inusitada história de que Albari tinha um pau enorme, descomunal, cuja cabeça lhe chegava ao joelho. A fama de Albari, aliás, do pau do negro Albari ultrapassava já as fronteiras municipais; no banheiro masculino da antiga rodoviária de Curitiba, lia-se, em chamativa tinta vermelha, a inscrição QUANDO FOR A ANTONINA, NÃO DEIXE DE CONHECER O ALBARI. Desavisado, o mijante pensaria se tratar de algum ponto turístico da pequena cidade, algo como um pico. Na verdade, tratava-se de uma pica.
Nas reuniões familiares, quando alguma coisa extraordinária acontecia ou era contada, uma amiga mais afoita invariavelmente exclamava, para gargalhada geral: é o pau do Albari! Tamanha era a fama do nosso ídolo que, numa tarde de domingo, alguns jogadores do Atlético desceram à cidade para um encontro com o Albari, no intuito de pagar uma boa grana para fotografar a avantajada jeba. Entre irritado e lisonjeado (um indisfarçável sorriso dançava-lhe nos lábios carnudos), o homem recusou-se peremptoriamente a exibir a beronga. Os jogadores, irredutíveis, foram dobrando a proposta até serem postos porta a fora. Nós, meros mortais, não conseguíamos entender por que Albari recusara aquela grana toda, digna de uma peladona da Playboy, bufunfa que lhe daria uma vida melhor (naquele tempo, a poupança rendia bons dividendos; ficávamos, na esquina da papelaria do Maurício, na farmácia do seu Carlos, no bar do Homero, calculando os lucros mensais, e juros sobre juros), além da fama nacional, quiçá internacional, planetária até, podendo ir parar no Guiness Book. Certeza absoluta, sempre soubemos disso, a cajarana de Albari era bem maior que a do russo Rasputin, o monge lúbrico. A atitude do semideus local era incompreensível, sendo que ele mesmo alimentava o mito ao movimentar, com a mão no bolso da calça de brim azul, a ponta do birro. Sim, na altura do joelho. Ou, ao sorrir, como se não estivesse nem aí, apertando um pouco os olhos de azeitona, para a ovação da molecada durante o esforço excessivo de soprar a tuba, coisa que, além de inchar as bochechas, movimentava a cabeça do cacete. Sim, na altura do joelho esquerdo. Meninos, eu vi!
Muitos anos depois, em conversa com o Dr. Gaross, o médico mais antigo da cidade, em meio a umas generosas doses de uísque, para minha decepção, já adulto, fiquei sabendo toda a verdade. Como a realidade é cruel, deitando por terra as fantasias mais caras da adolescência. A afamada estrovenga do Albari era do tamanho normal. Depois de tudo, uns despeitados ainda tiveram a ousadia de insinuar que, na verdade, o pinto do Albari era mesmo uma piroquinha de nada. Acontece que o tocador de tuba tinha a bexiga frouxa, a qual ficava vazando constantemente, pingando na cueca e, consequentemente, molhando a calça, tal e qual uma torneira velha que precisasse trocar a bucha. Valia-se ele então de uma mangueira, fechada numa das pontas, presa na cabeça do pênis, esvaziada de hora em hora. Era o artifício encontrado por Albari para levar uma vida normal, depois de vários tratamentos infrutíferos e simpatias mais ainda. Desculpem-me os amigos antoninenses, mas foi-se pelos ares mais uma lenda capelista.
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